Rastreio de Cozinha - 23
"Desconstrução é a base da reconstrução sem que haja destruição", diz Ferran Adrià sobre a técnica que é uma das bases da gastronomia contemporânea. As outras, como já dito antes aqui, são fusão, releitura, criação, vanguarda, slow food, confort food, orgânica, cook chill e food design (no Rastreio de Cozinha - 5, eu descrevi com detalhes a cozinha contemporânea).
Segundo a gastronomia moderna (contemporânea), há técnicas, processos e ingredientes que estão em alta (in) ou em baixa (out).
In
- Grelhados
- Queijo brie
- Legumes salteados
- Ervas frescas para molhos
- Porções pequenas decoradas
- Pouca gordura
- Tomate in natura
Out
- Frituras
- Mussarela
- Legumes cozidos
- Farinha de trigo para engrossar
- Prato Cheio
- Manteiga
- Tomate seco
Na cozinha contemporânea, dois elementos são bastante usados para garantir a desconstrução dos pratos e a transformação das produções em comida que engana a visão, mas, que, ao paladar, remeterá ao prato clássico que foi desconstruído. "Ora", direis, "trata-se apenas de frescura"! "Ora", refutarei, "trata-se do mesmo prazer que a arte tem na desconstrução do clássico para fazer o moderno". Não se esqueça que a desconstrução somente é possível com o domínio do clássico. Para todos os setores: arte, cinema, dança, moda etc. etc.
Os dois elementos a que me referi são: o agar (ou agar agar), que é um aditivo espessante gelificante, à base de caule de algas marinhas e que endurece em temperatura ambiente e, mesmo fora da geladeira, permanece consistente; e a gelatina, que é proveniente de ossos e cartilagens e que endurece na geladeira e volta ao estado líquido em temperatura ambiente.
Pois que a aula desta sexta-feira, de Cozinha Contemporânea, foi de desconstrução, com o uso de agar e de gelatina, e pratos tradicionais e clássicos transformaram-se, magicamente.
Foram quatro os pratos clássicos desconstruídos: Canard L Orange (Pato com Laranja), Filet de Sole aux Câpres (Filé de Linguado com Alcaparras), Apple Pie (Torta de Maça) e Vichyssoise (sopa fria). Como a bancada hoje estava com quatro pessoas, cada um fez uma produção. A que eu mais gostei foi a do colega que fez uma maravilhosa desconstrução da tradicional Torta de Maça, com carolinas, levíssimos recheios de maçã e caramelo. Ficou divina!
As demais produções também foram desconstruídas e resultaram num Pato com Laranja de sabor equilibrado, sem a marcante presença da carne de pato, e a Vichyssoise, que se transformou num pequeno pudim com recheio de batatas. Eu gostei da experiência.
A mim me coube descontruir o Filé de Linguado com Alcaparras. Eu o transformei num ravióli líquido e descreverei a receita conforme os procedimentos feitos em aula. É, no mínimo diferente, se você pensar em um filé de peixe com alcaparras e, de repente, se ver frente a frente com raviólis fritos com recheios líquidos (semelhante, na essência, ao doce de abóbora que fica crocante por fora e com um liquidozinho por dentro). Mas, nem vou me estender nisso porque, quando escrevi sobre líquidos, fui até a Cordilheira dos Andes, feito uma águia desatinada. Vou passar a receita (ou devo chamar de des-receita?).
Ravióli Líquido de Linguado com Alcaparras
Ingredientes
- 250 gr de filé de linguado (é peixe, e não uma competição de línguas, para quem não sabe)
- 25 gr de alcaparras
- 150 gr de manteiga
- sal a gosto
- 2 limões
- salsinha a gosto
- 1/2 cebola
- 1 dente de alho
- 1/2 copo de vinho branco
Para a massa do ravióli
- 200 gr de farinha de trigo
- 2 ovos
- 60 gr de semolina
- 5 ml de azeite
- sal a gosto
- 3 folhas de gelatina sem sabor (de uso profissional)
Modo de preparo
1. Corte o linguado em pequenos cubos e tempere com sal, limão e pimenta-do-reino.
2. Prepare uma frigideira com manteiga e doure a cebola e o alho picados em brunoise.
3. Acrescente os cubos de linguado e os doure até formar um caldo espesso. Adicione o vinho e deixe reduzir. Lembre-se de conservar o caldo (semelhante ao fumet, ou fundo ou caldo).
4. Certifique-se de que o peixe está bem macio e de que haja bastante caldo. Se for o caso, retire alguns pedaços de peixe e os use para outras produções (ou, se estiver com fome, coma). O peixe tem que, praticamente, derreter e virar, junto com o caldo, uma sopa de peixe. Reserve.
5. Hidrate as 3 folhas de gelatina em água gelada. É rapidinho.
6. Coloque as folhas de gelatina hidratadas na frigideira com o peixe e retorne ao fogo rapidamente, somente até a gelatina se dissolver por completo.
7. Leve o peixe à geladeira (ou freezer).
8. Faça a massa do ravióli enquanto o peixe atinge o ponto ideal.
9. Misture a farinha de trigo, os ovos, a semolina e o azeite.
10. Trabalhe a massa como se fosse de pão. É o mesmo processo.
11. Deixe a massa descansar por 20 minutos.
12. Aproveite o hiato entre o descanso da massa e a geleificação do peixe para fazer alguma coisa útil. Nada de dar uma voltinha, pegar no telefone ou outras coisas inúteis. Prepare as alcaparras. Tudo o que é feito com o tempo certo tende a ficar melhor.
13. Pique as alcaparras em brunoise e as tempere com limão e azeite. Ficam ótimas (desde que você acerte no equilíbrio ente a alcaparra, o limão e o azeite).
14. Prepare (espera-se que você, neste intervalo, teve tempo de preparar as alcaparras, limpar tudo o que sujou e estar pronto(a) para a próxima fase) a massa para cortar os raviólis.
15. Estenda a massa com rolo de cozinha até que fique transparente (a massa, não o rolo). Como estou numa faculdade, disponho de uma máquina de processar a massa. Tanto pelo meio primitivo (rolo) quanto pelo contemporâneo (máquina), o processo é o mesmo. Basta aspergir um pouco de farinha de trigo, se for o caso, até a massa atingir a consistência lisa e fininha que nós, que aqui estamos, por vossa massa maravilhosa esperamos.
16. Estenda a massa, que deverá parecer um véu, numa superfície lisa (sem um grão sequer que interfira). Verifique se o peixe está geleificado e comece a cortar e montar os raviólis. Você pode escolher o formato que quiser. Eu fiz o mais bonito, lógico, de meia lua. Corte o peixe geleificado em pequenos cubos e recheie o ravióli. Feche as bordas do ravióli, sem ar dentro, com os dedos (não use garfo porque não estamos aqui a fazer pastéizinhos caseiros). Umedeça as pontas dos dedos porque é mais fácil colar uma extremidade na outra (da massa, não das suas mãozonas).
17. Prepare uma panela com ólveo fervente (cerca de metade da panela). Frite os raviólis por imersão.
18. Decore o prato conforme sua preferência e sirva os raviólis líquidos com o molho de alcaparras. Ficam deliciosos.
(Rastreie: Quer aprender a fazer massa de verdade? Vá a Porretta, na Itália, aprender com quem sabe. Foi o que fez o jornalista Bill Buford, ex-editor de ficção da revista The New Yorker. Buford conta sua experiência no livro "Calor - aventuras de um cozinheiro amador como escravo da cozinha de um restaurante famoso (Babbo, de NY), fazedor de macarrão (em Porretta, Itália) e aprendiz de açougueiro na Toscana" - Cia das Letras, 424 páginas, R$ 49,50.)
2 Comentários:
Isso não se faz!!!!
Putz, isso é que é tesão por alguma coisa. E minha barriguinha não para de roncar.
Um primor de post. Pra ser degustado com os olhos, com a língua e com a ponta dos dedos.
Beijos!
Oi Amèlie, que comentário saboroso! Assim, tendo a continuar no louvor à comida. Beijo!
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