Meu rugido dominical
Morre-se de tristeza. Isso é dado como certo. Agora, dá para ter overdose de alegria? Você já ouviu alguma vez alguém reclamar que é muito alegre e que, por conta disso, há que se limitar essa expansividade? Que se deve alinhar o montante de alegria disponível com o contexto em que se está na vida como se fosse um planeta fora de órbita? Existe algum padrão de comportamento que deve limitar o uso da alegria? Alguma represa que estanque a euforia e a serotonina liberadas pelo ato de estar ou ser alegre?
Pois achei duas pessoas - não uma! -, e sim duas que me indicam uma tendência absurda: ambas estão num processo de conter a alegria porque sentem que não há espaço em suas vidas para tanta alegria junto.
No momento em que o Cirque du Soleil está a berrar "Alegría" (veja o vídeo abaixo deste texto) entre nós, essas duas pessoas querem encaixotar suas alegrias em contêineres e usar a reserva com parcimônia, sem estardalhaço. Um uso social, digamos, semelhante ao ato de fumar e de beber. "Sou alegre socialmente", diriam, como se dissessem "Bebo socialmente".
Acho bastante engraçada - mas não alegre - essa atitude. O laboratório farmacêutico Eli Lilly (soa tão mimoso esse nome) inventou o Prozac em 1986. A pílula da felicidade. Vendeu, mundialmente, o equivalente a US$ 3 bilhões anuais. Para lançá-lo, gastou cerca de US$ 1 bilhão. Somente no Brasil, o Prozac é receitado para mais de 1,5 milhão de esquizofrênicos e bipolares. Depois de todo esse esforço, ouço que a alegria deve ser contida. A pílula da felicidade, tão cara, vai para a lata do lixo. O Eli Lilly terá que desenvolver uma pílula redutora de alegria, assim como o Xenical, na teoria, reduz o apetite. Mas, o efeito colateral do Xenical é uma dor de barriga desenfreada, uma espécie de coletor de gordura que deixa o consumidor prostrado.
Qual é o efeito colateral da redução da felicidade programada? Em conversa com uma das vítimas que foi acometida com a "Síndrome de Alegria por Demais", sugeri que toda a felicidade que ela dispensar deve ser guardada em contêineres. Vá às docas de Santos e guarde, assim como guardam eletrônicos roubados e importados que fazem a festa da Daslu. Quando necessário, na calada da noite (entre 1 da manhã e 5 da manhã), a pessoa pode ir às docas e sacar um pouquinho de alegria como se estivesse num terminal de banco. Digita os dados e consome a dose precisa de alegria. Se consumir demais, overdose. De menos, depressão. É preciso equilibrar. Vou reclamar com a classe médica para que emitam receitas precisas. Legíveis. Que não enganem o paciente. Que não quer rir demais e tampouco parecer feliz demais.
Vou sugerir ao governo a criação de uma Agência Nacional de Alegria (ANA). A ANA fiscalizará, por meio de regulamentação específica, o uso correto de alegria. Haverá a universalização da alegria, a inclusão social de felicidade. Todos terão acesso. Com direito a bandas largas, não em pequenas doses.
Quem pode com um país que tem ANA? Quem? Uma sociedade que regula sua alegria. Que provê doses equilibradas para os mais de 180 milhões de brasileiros. Seremos assistidos por alegria. Teremos o direito de cidadão de termos nossa dose diária. Haverá, claro, casos de overdose. Porque alguns são mais atrevidos. Haverá também aqueles que poderão padecer da falta de alegria. Esses deverão ser recolhidos em clínicas, para desintoxicação. Os outros, que são cautelosos, e usam as doses como se fossem pequenas barras de ouro, ao contrário, poderão ter anemia de alegria e vão, com isso, cair na depressão. Esses deverão ser acompanhados de perto. Sempre os há, os que querem ficar imunes. Não podem. Ninguém ficará sem alegria.
Haverá, por parte da ANA, um programa de desbloqueio de alegria. Haverá operadoras que controlarão o suprimento de felicidade. Se houver necessidade, o governo deverá importar alegria de Cuba e da Dinamarca. Claro que sempre há quem se aproveite desses momentos de tensão na implantação de grandes programas nacionais. Talvez haja quem venda alegria clandestinamente. Cuidado para não comprar alegria falsa no camelô. Ninguém ainda sabe quais são os efeitos dessa alegria de origem desconhecida. Soturnamente, haverá quem negocie alegria nas danceterias. Porque ecstasy (que age sobre a liberação de serotonina) e alegria caminham juntos. Cuidado para não comprar gato por lebre.
Uma campanha massiva será divulgada na televisão para ensinar as pessoas como dispor de sua alegria. "Você tem alegria de sobra"? Compareça ao banco de alegria e faça sua doação. Muitos são os que estão na fila de transplante de alegria, à espera de almas caridosas que lhes forneçam afeto.
Os que morrerem de overdose de alegria serão usados em campanhas educativas como as do fumo e de acidentes de carro para provar à massa que o excesso mata. Na França, existe a Denominação de Origem Controlada (DOC), que controla a procedência de vinhos e queijos e garante a qualidade do produto. Serão implantados numerosos DOCs no Brasil, sob a administração da ANA, para garantir a procedência da alegria. Se a sua está contaminada, ficará sob quarentena. O DOC terá o poder de vida e morte sobre sua felicidade. Você poderá ser visto como exemplo ou como um fracasso na geração espontânea de alegria.
Nesse processo, a única classe pela qual eu temo são os palhaços (incluídos os Doutores da Alegria). Com o processo de implantação nacional de alegria, esses estarão condenados ao ordinário. Perdem a profissionalização. Perdem a graça. Porque seremos todos palhaços, fontes geradoras de alegria.
O problema é que esse tipo de solução sempre tem dois lados. A princípio, todos vêem o lado bom, de compartilhamento, de doação. O que há muito em um, deve ser dividido para os demais. Depois, com o passar do tempo, as pessoas começam a se revoltar. Querem sua alegria (de mais ou de menos) de volta. E aí começam as acusações, a caça às bruxas. Eu posso denunciar meu vizinho porque ele riu alto demais e, portanto, tem mais alegria do que eu. Se alguém chorar, pode ser enviado para execução. Seremos serenos. Quem estiver fora da Faixa de Gaza dessa serenidade estará, solenemente, condenado à morte.
Haverá guerras de laboratórios farmacêuticos multinacionais que boicotarão o Brasil. Haverá desencontros. Filas. Multidões atrás de alegria. Mas, de uma forma contida. Tudo o que for excesso ou falta, será punido. Pessoas escandalosas, que riem demais, serão trancafiadas em quartinhos escuros para pensar no assunto. Seres tristes serão submetidos a doses cavalares de alegria até encontrar o ponto de equilíbrio. Seremos todos felizes, porém, de forma ordenada. E, por causa de duas pessoas que eu conheço, que acreditam que suas alegrias estão demasiado extensas, a alegria será estatizada. Lembra-se de que você não podia rir alto na sexta-feira santa? É isso. Contenção, redução, parcimônia. E todos podemos ser felizes com o mínimo necessário. Sabendo usar, não vai faltar (porque uma dessas pessoas adora ditados populares).
Não! Não! Não! Vamos celebrar a alegria!!!! Por favor!! Há tão pouco no mundo. Choro, desespero, tristeza. Never more, never more, disse até mesmo o corvo de Poe. Mais alegria, mais riso, mais felicidade. Pelas alegrias irrestritas já!
5 Comentários:
Eu não digo? Já estou aqui morrendo de rir do seu post e precisando, rapidamente, de um moderador de alegria. Não estava nos meus planos essa desandada...
Agora, em off, que gente esquisita, não? querer alegria só quando tiver base, eu hem.
bjs
Voltando, para completar. Não acho que essas duas pessoas defendam a tristeza, o desespero, o baixo astral. não posso falar por elas, mas entendo a necessidade de alguns de conterem um pouco mais suas emoções, inclusive para não mergulharem demais na depressão. A euforia, sem ligação com a realidade, também é um tipo de tristeza, ou de fuga. sei lá,
bjs
Como é q vc muda a cor dos videos?
Oi Servilio, quando você estiver no YouTube, vá até a parte direita da tela, no módulo "Sobre este vídeo". Há a opção de personalizar e é ali que você escolhe a cor. Abraço.
Bem, esta é uma ideia muito Saramaguiana. Quem sabe se o próprio autor não pega na deixa e escreve sobre a alegria. Já estou a ver o título: Ensaio sobre a Alegria. Alegremo-nos, pois então!
Ana C
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