Rastreio de cozinha - 10
Sem o clássico, não existe o moderno. É assim para a dança, para a música, pintura, arquitetura e também para a gastronomia. Na cozinha, chegamos à desconstrução molecular do chef catalão Ferran Adrià, que revolucionou totalmente a abordagem contemporânea da gastronomia porque, no passado, houve Marie-Antoine Carême (chef francês que, de 1.805 a 1.844, codificou a haute cuisine, ou alta gastronomia).
Depois, houve Auguste Escoffier (também chef francês) que, a partir de 1.878, revolucionaria e aperfeiçoaria as técnicas iniciadas por Carême e chegaria à Cozinha Francesa Moderna. Escoffier trabalhou para simplificar e modernizar o estilo de Carême. Com Escoffier, finalmente, a gastronomia é elevada ao status de profissão. As cozinhas foram organizadas em brigadas (sistema válido até hoje), onde cada uma das seções é gerenciada por um chef de partie (chefe de partida). Foi Escoffier que também influenciou o resto do mundo no modo de servir à mesa: o serviço à francesa (onde todos os pratos são servidos de uma única vez) foi substituído pelo serviço à russa (um prato por vez, na ordem disposta no menu). E é assim que funciona desde então em qualquer restaurante ocidental em todo o mundo.
Tivemos nesta sexta-feira, décimo dia de aula, a segunda rodada da disciplina de Cozinha Contemporânea. E Ferran Adriá é um dos seus expoentes máximos. Contudo, a contemporaneidade é dinâmica, apressada, moderna, rápida. Neste ano, os novos ventos sopram na direção da Itália. O suplemento "Paladar", do Estadão, deu capa na última edição e chamou de "la nuova nueva nouvelle cucina" o que vem por aí: os novos chefs são Massimo Bottura e Carlo Cracco, que defendem uma simplificação na criação dos pratos (a foto que estampa este post é o ravióli de Bottura).
Hoje, em classe, continuamos a abordagem teórica. Na semana que vem, já teremos aulas práticas de Cozinha Contemporânea. Não temos a tecnologia de Ferran Adrià (caríssima, conforme admitido pelo próprio chef). Não temos matéria-prima, como o alginato, nem equipamentos. Quanto temos equipamentos, são caros demais, como o Thermomix (Bimby em alguns países), um compacto thermo multi-processador, de fabricação alemã, que faz misturas, quentes ou frias, como sorbet e sorvete; massa de pão ou pizza; tem a função de sova; faz cremes para sobremesa, zabaione; geléia (com as frutas inteiras); risoto, polenta (mói o milho); cozinha verduras ou peixes no vapor; pica, mói etc. No Brasil, custa cerca de R$ 6 mil (as mensalidades da faculdade, somadas o ano inteiro, chegam a R$ 9 mil).
Os restaurantes gastronômicos (como o el Bulli, de Ferran Adrià, e o D.O.M., de Alex Atala) são contemporâneos. Um restaurante desse tipo é caro e é frequentado por pessoas que fazem a distinção entre a alimentação (que é a satisfação da necessidade física) e a gastronomia (que é a conversão do ato de comer em um prazer para os sentidos). Posso soar esnobe com essa afirmação, eu sei. Mas, no el Bulli, uma refeição chega, fácil, aos R$ 5 mil por cliente. No D.O.M., que não é exatamente uma vitrine gastro-química como o el Bulli, em média, gasta-se R$ 300,00 por um prato clássico. O público que vai a esse tipo de restaurante é exigente e está aberto a novas experiências. É o público que paga para ver a dança moderna, para morar em prédios de arquitetura com grife e que compra objetos de design feitos pelos irmãos Campana e por Phillipe Starck. Sobretudo, tem dinheiro e faz do ato de se alimentar um ritual, e não apenas uma satisfação da necessidade fisiológica.
A cozinha contemporânea tem que arriscar: no uso de produtos e misturas inéditas, na apresentação dos pratos, na criação de sabores que remetam, simultaneamente ao novo (na aparência - visão) e ao antigo (déjà vu, no sentido de resgatar memórias gustativas afetivas - paladar). Tem que haver harmonia de cores. É sempre a releitura do clássico. Sempre voltamos ao passado para nos reinventarmos. E é assim também na gastronomia.
Na aula de hoje, assistimos ao filme "Los Alquimistas de La Cocina", com Ferran Adrià e equipe. O filme ainda é inédito no Brasil e dá uma pequena amostra da cozinha experimental do chef catalão. Adrià tem projetos em andamento para elaborar e publicar enciclopédias sobre as técnicas que usa para produzir seus pratos originais. A isso se denomina codificação. É isso que a França já fez, com Carême e Escoffier, e que deu o impulso para disseminar a gastronomia francesa por todo o mundo. É isso que Adrià faz, atualmente, pela cozinha espanhola. E é isso que Alex Atala e outros chefs no Brasil farão com a nossa própria cozinha. Nós, alunos, estamos no meio desse processo.
Assista, abaixo, um dos inúmeros vídeos com a técnica de Adrià. Se puder, vá ao el Bulli. E me leve com você, claro. Sou ótima companhia, bom ouvinte e arranho o catalão (que mistura francês e espanhol). Você não se decepcionará, nem com o el Bulli, nem comigo.
(Rastreie: no segundo dia de existência desse blog, publiquei um post em que me cobrava a necessidade de assistir a "Ratatouille". No final do ano passado, assisti. Achei lindo. O filme retrata a estória de Remy, um rato cujo sonho é ser chef de cozinha. Muitas cenas homenageiam chefs reais (vivos e mortos) e o filme demorou cinco anos para ficar pronto para ser precisamente fiel às grandes cozinhas. Não perca!)
4 Comentários:
I see that you are also a fan of Anthony Bourdain.
The humans as penguin video below was very interesting.
Nice blog.
Oi Red,
Como é que é esse negócio de servir à mesa? Usamos a maneira russa? Ai que medo!!!
Aqui em Moscou, quando vamos aos restaurantes começamos a torcer. Te explico. Quando estamos em cinco pessoas por exemplo, cada prato chega em um momento diferente. E coloca uma boa lacuna nisso. Eles não conseguem servir todos os pratos juntos!
Tem dia em que um está terminando seu macarrão e outro já está na metade da sobremesa! Deus é mais!
Já até tentamos pedir o mesmo prato, tudo igual... e nem assim!
Só rindo! E babando de fome! Nossa quanta tortura pra uma pessoa só! hahahaha
bjs, andrea
Hi Dineometerdeb! Thanks to visit me. Actually, I´d prefer Thomas Keller. For me, Anthony Bourdain is to much midiatic and a good books seller. Come back! See you around!
Oi Andrea, na verdade, a moda russa a que eu me referi é aquela da corte russa, do czar Alexandre I, para o qual o chef Carême trabalhou. O jantar francês se divide em três serviços. O primeiro compreende os caldos e sopas, os acepipes, os pescados e as entradas; o segundo, o assados e as verduras; o terceiro, as sobremesas. Os pratos são apresentados simultaneamente para cada serviço. Já a moda russa consiste em dispor todos os pratos frios sobre a mesa e apresentar individualmente os pratos quentes aos convidados. É claro que, no dia-a-dia, somente os restaurantes sofisticados o fazem corretamente. Mas, é esse o conceito. Beijo.
Ah! Saquei! bjs,
andrea
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