Um mar de histórias
Sempre me ressinto do primeiro humano que resolveu estabelecer as relações de trabalho que nos guiam a todos nós, independentemente dos nossos desejos. Quer dizer, por que tem que haver esse sincronismo entre as diferentes cadeias produtivas para que uns poucos apenas ganhem? Melhor: por que tem que haver o estabelecimento de cadeias produtivas?
Bem, mas isso é um tanto quanto indigesto para debater neste particular momento em que, ao menos simbolicamente, o meu próprio ano produtivo ainda nem bem começou. É apenas um pensamento para induzir a outro, mais específico, resultado de fundamentos científicos. A revista "Science" divulgou uma pesquisa na qual descreve a ação do peixe bodião-limpador (Labroides dimidiatus). Esse peixe tem por característica a tarefa (nada inglória, na minha opinião) de remover fungos, bactérias e parasitas do corpo de peixes maiores. E o faz de forma bastante eficiente, já que na própria comunidade de Labroides (não procurei, mas quase posso assegurar que há relação com 'labor'), quem não faz o serviço de forma bem-feita, é devidamente corrigido pelos colegas Labroides.
No artigo da "Science", é apresentada a forma como os peixes-limpadores aplicam a punição: os peixes que não foram diretamente prejudicados pela conduta do peixe-limpador preguiçoso tomam as dores dos eventuais clientes (peixes maiores que têm fungos, bactérias e parasitas a serem removidos) e castigam o prestador de serviço que deixou, adivinhe, o serviço pela metade.
Numa precisa correlação com a organização das sociedades humanas, os peixes-limpadores castigam-se entre si quando um dentre eles não faz o que deve ser feito. E aqui abro um parêntese breve: em livro que li - e que será alvo de post específico - defende-se a tese (na qual acredito) que, antes de chegarmos às linhas evolutivas de macacos e depois humanos (não, não descendemos diretamente de macacos, somos uma das linhas que derivaram da mesma família porém sem que tenhamos tido tatataravós símios) de que, antes de chegarmos ao solo da Terra, vivemos de forma anfíbia. Mais, que viemos, até chegar aqui, em linha evolutiva direta de peixes. Me parece boa a tese. Mas, note, apenas me parece, já que não sou especialista de nada a não ser de generalidades.
De qualquer forma, a organização dessa sociedade de peixes-limpadores funciona dessa maneira. E mais um elemento que pode soar particularmente ofensivo mas que, de novo na minha modesta opinião, é apenas um detalhe divertido: os alvos dos castigos do peixe-limpador são sempre as peixas (essa palavra não existe). As fêmeas-limpadoras, aparentemente, são mais negligentes e - ai! mas não resisto! - são elas que causam a maior parte da confusão com o alvo a ser higienizado: além de limparem parasitas, as danadas atacam as mucosas dos demais peixes. O que, ao que parece, segundo a lei pisciana, constitui-se em ato claro de agressão. Quer dizer, é meia-antropofagia, já que devoram partes dos demais peixes.
Tudo isso dito, chego a nós, homens (claro, homens e mulheres). O comportamento dos peixes-limpadores, ainda conforme o artigo da "Science", pode ajudar na compreensão da origem evolutiva do próprio comportamento humano (recorde-se da tese de que evoluímos dos peixes). O trabalho simbiótico de peixes-limpadores - inclusive com castigos a quem comete deslizes - seria uma base distante, mas bem distante mesmo, do nosso atual conceito de solidariedade.
A única objeção a que faço ao estudo (OK, sou apenas leigo mas, ao ser, eventualmente, herdeiro dos peixes, tenho o direito de fazê-la) é a de que os cientistas autores do artigo concluíram apenas pelo conceito de solidariedade que é, essencialmente, positivo. Deixaram de lado o comportamento obscuro das fêmeas que, rebeldes, desatam a comer as sobras e também o corpo de quem as alimenta. Bem, isso também nós, humanos, herdamos dos peixes. Que nos comemos uns aos outros, metafórica ou literalmente, tanto às sobras quanto aos próprios corpos que as carregam, às sobras. E, por vezes, temo, não deixamos nem sobras uns dos outros.
P.S. Para que você não fique em brancas nuvens, quer dizer, em águas turvas, já que estamos no mar, apenas as duas primeiras fotos são de Labroides dimitiatus. As demais, por as considerar bonitas, resolvi postar aqui.