Blog Widget by LinkWithin
Connect with Facebook
Mostrando postagens com marcador Literatura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Literatura. Mostrar todas as postagens

sábado, 29 de janeiro de 2011

The book is on the table

Nos 15 dias que estive de férias entre o final do ano passado e o início deste, aproveitei, como sempre o faço no meu tempo livre, para dar cabo de alguns livros que ficaram relegados à poeira.


Antes que eu desse cabo de todos, alguns deram cabo de mim pela força. Mas, eu não me canso. Insisto em navegar nas linhas, na literatura que tenta explicar tantos porquês, tantos hiatos, dúvidas, traições, comportamentos.


Dos cinco livro que li, três foram suficientes para me causar inquietação, que é o que busco nos livros. Que me façam pensar e, se possível, ir além, cada vez mais além da mediocridade. É nos livros, sempre, que encontro um sossego ante o desassossego da vida cotidiana. Embora pareça uma contradição, ainda que o livre gere novas e desavisadas reflexões, é no terreno da literatura que melhor me encontro. Aos livros.



 - 2666 (Roberto Bolaño - editora Companhia das Letras - 852 páginas): esse catatau de páginas, na verdade, não é apenas um, e sim cinco livros. Embora inacabado, é considerado a obra-prima do escritor chileno, morto precocemente aos 49 anos. Originalmente, foi concebido para ser cinco livros diferentes. Com a saída de Bolaño de campo, talvez os editores acharam melhor concentrar tudo num só lugar. Inacabado ou não, um ou cinco livros, é, realmente, um livro de fôlego, o qual se lê sem fôlego horas a fio. Nem vou dizer que se lê esse livro sem parar porque não é verdade. Comecei lá atrás, em meados de 2010, e somente o concluí ao raiar deste ano. O nome do livro, 2666, é um mistério. Não houve tempo hábil para que o escritor o explicasse e pipocam hipóteses. Mas, o que importa mesmo é que o livro é, sim, muito bom. Começa com a investigação de um escritor recluso, passa por uma série de assassinatos no México e termina com a história do misterioso escritor. Muito bom. Leia.




- Lugar (Reni Adriano - editora Tinta Negra - 111 páginas): tamanho, efetivamente, não é documento. Com 1/8 de páginas em relação ao 2666, Lugar é uma pequena obra-prima do escritor brasileiro que foi revelação em Minas Gerais em 2009. É um livro mítico, de mitos fundadores, da violência com que se engendram os mitos. É reinvenção da roda, da língua portuguesa, da literatura brasileira. Novidade sim. Novo. Desde já, clássico. Recomendo muitíssimo. As palavras não são emitidas. São escandidas. Feito barba cerrada. "Cale-se! Afasta de mim esse pai". A ressonância com Chico Buarque, o diálogo que se empreende em níveis duros, profundos. O livro, parece, foi forjado em ferro. Manualmente.




- A Guimba (Will Self - editora Alfaguara - 331 páginas): depois do maravilhoso 'O Livro de Dave', Self volta com este romance irônico sobre o mundo do politicamente correto em que somos despidos nos aeroportos para ir e vir e, sem o direito de ir e vir livremente (estamos presos à liberação ou não de vistos), faz uma metáfora angustiante dessa nova realidade mundial. Não é uma nova ordem mundial. Antes, é uma desordem mundial, que pode ser iniciada com a ponta de um cigarro, a guimba. Self, uma vez mais, é brilhante ao descrever um mundo que, se ainda não é assim, não tarda em sê-lo. A continuar nesta saga, com um olhar avassalador sobre a in/evolução da humanidade, por certo estaremos condenados a nos fecharmos cada qual em claudicantes celas. Preocupante. Livro necessário para entender as dimensões que o 11 de Setembro deu ao mundo.




- Pegando Fogo - Por que cozinhar nos tornou humanos (Richard Wrangham - editora Zahar - 22 páginas): considerado um dos 100 melhores livros de 2009 pelo The New York Times, o livro investiga o que seria da evolução humana sem o fogo para cozinhar a nossa comida. É, antes de tudo, um trabalho científico, de investigação antropológica e sociológica, e avança ao complementar teses de Charles Darwin e de outros cientistas. Wrangham defende a tese de que começamos a cozinhar antes de nos tornarmos homens e que nos tornamos homens justamente porque passamos a cozinhar. O domínio do fogo há um 1,8 milhão de anos, mostra o livro, mudou completamente a história da humanidade e de nós mesmos, humanos atuais. Que somente o somos porque aprendemos (com nossos antepassados, que ainda não eram homens) a cozinhar. Interessante.




- A Cozinha a Nu (Santi Santamaria - editora Senac - 277 páginas): Sanatamaria é um chef espanhol, defensor aguerrido da comida e dos ingredientes naturais. Refuta modernismos, entre os quais a cozinha molecular de Ferran Adrià (que, por ora, fechou o festejado El Bulli, por prazo indeterminado, e também perdeu, no mesmo El Bulli, a companhia do irmão, que prefere a cozinha tradicional). O chef defende a volta ao campo, aos ingredientes de autênticos terroir e desbanca a indústria alimentícia multinacional - Kraft Foods, Nestlé, Unilever e outros conglomerados que produzem enlatados, conservantes, acidulantes e outros artifícios para vender comida cada vez mais anti-natural. É um verdadeiro manifesto contra uma comida falsa que tem um único mérito: criar pessoas obesas ao redor do mundo numa alimentação que padroniza e iguala a comida do Brasil à China. Excelente.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

2666

Calma, não é um número de candidato a nada. Nem o número da besta em dobro. Tampouco é alguma conta maluca a que eu cheguei ao fazer cálculos mais estranhos ainda. 2666 não significa nada, na verdade. Pelo menos o livro "2666" - Roberto Bolaño - Companhia das Letras - 852 páginas, em si mesmo, não remete a nenhum significado aparente. Se o tem, o número 2666, significado, esse ficou guardado com o autor, que já é morto. Estou a ler o livro há meses. De tempos em tempos, leio um trecho. São cinco romances dentro de um livro. Quero destacar um texto, um textículo pelo qual acabei de passar que muito me agradou:




"Há coisas mais esquisitas que a sacrofobia, disse Elvira Campos, sobretudo se levarmos em conta que estamos no México e que aqui a religião sempre foi um problema, na verdade, eu diria que todos os mexicanos, no fundo, sofremos de sacrofobia. Pense, por exemplo, num medo clássico, a gefirofobia. É algo de que muita gente padece. O que é gefirofobia?, perguntou Juan de Dios Martínez. É o medo de atravessar pontes. É verdade, conheci uma pessoa, bem, na realidade era um menino, que sempre que atravessava uma ponte temia que ela caísse, de modo que atravessava correndo, o que era muito mais perigoso. É um clássico, disse Elvira Campos.


Outro clássico: a claustofobia. Medo dos espaços fechados. Mais outro: a agorafobia. Medo dos espaços abertos. Esses eu conheço, disse Juan de Dios Martínez. Mais outro clássico: a necrofobia. Medo dos mortos, disse Juan de Dios Martínez, conheci gente assim. Se você trabalha na polícia, é espeto. Também tem a hematofobia, medo de sangue.


Certíssimo, disse Juan de Dios Martínez. E a pecatofobia, medo de cometer pecados. E depois tem outros medos, que são mais raros. Por exemplo, a clinofobia. Sabe o que é? Não faço a menor ideia, disse Juan de Dios Martínez. Medo de cama. Como é que alguém pode ter medo ou aversão a uma cama? Pois é, tem gente que tem. Mas isso dá para atenuar dormindo no chão e nunca entrando em um dormitório.


Depois tem a tricofobia, que é medo de cabelo. Um pouco mais complicado, não é? Complicadíssimo. Há casos de tricofobia que acabam em suicídio. E também tem a verbofobia, que é o medo das palavras. Nesse caso o melhor é ficar calado, disse Juan de Dios Martínez. É um pouco mais complicado que isso, porque as palavras estão em toda parte, inclusive no silêncio, que nunca é um silêncio total, não é?


Depois temos a vestiofobia, que é medo de roupa. Parece raro mais é muito mais difundido do que parece. E um relativamente comum: a iatrofobia, que é medo de médico. Ou a ginofobia, que é medo de mulher e de que, naturalmente, só os homens sofrem. Difundidíssimo no México, embora disfarçado com as mais diversas roupagens. Não é um pouco de exagero seu? Nenhum pouquinho: quase todos os mexicanos têm medo das mulheres. Não sei o que dizer, falou Juan de Dios Martínez.


Depois há dois medos que no fundo são muito românticos: a ombrofobia e a talassafobia, que são, respectivamente, o medo da chuva e o medo do mar. E outros dois que também têm um quê de românticos: a antofobia, que é o medo das flores, e a dendrofobia, que é o medo das árvores.


Alguns mexicanos sofrem de ginofobia, disse Juan de Dios Martínez, mas nem todos, não seja tão alarmista, senhora.


O que o senhor acha que é a optofobia?, perguntou a diretora. Opto, opto, uma coisa relacionada com os olhos, na certa, medo de olhos? Pior que isso: medo de abrir os olhos. Em sentido figurado, isso contesta o que o senhor acaba de dizer sobre a ginofobia. Em sentido literal, produz transtornos violentos, perdas de consciência, alucinações visuais e auditivas, e um comportamento em geral agressivo. Conheço, não pessoalmente, é claro, dois casos em que o paciente chegou à automutilação. Arrancou os olhos? Com os dedos, com as unhas, disse a diretora. Puxa vida, disse Juan de Dios Martínez.


Depois temos, é claro, a pedifobia, que é medo de crianças, e a balistofobia, que é medo de bala. Essa é a minha fobia, disse Juan de Dios Martínez. Sim, suponho que seja de senso comum, disse a diretora.


Outra fobia, esta vem aumentando, é a tropofobia, que é o medo de mudar de situação ou de lugar. Que pode se agravar se a tropofobia se torna agirofobia, que é o medo das ruas ou de atravessar uma rua. Sem esquecer da cromofobia, que é o medo de certas cores, nem da nictofobia, que é o medo da noite, nem da ergofobia, que é o medo de tomar decisões. E um medo que está começando a se difundir é a antropofobia, que é o medo de gente.


Alguns índios sofrem de forma acentuada de astrofobia, que é o medo dos fenômenos metereológicos, como trovões, raios, relâmpagos. Mas as piores fobias, a meu ver, são a pantofobia, que é ter medo de tudo, e a fobofobia, que é o medo dos próprios medos. Se o senhor tivesse que sofrer de uma das duas, qual escolheria? A fobofobia, disse Juan de Dios Martínez. Tem seus inconvenientes, pense bem, disse a diretora.


Entre ter medo de tudo e ter medo do meu próprio medo, escolho este último, não se esqueça de que eu sou policial e que se tivesse medo de tudo não poderia trabalhar.


Mas se o senhor tem medo de seus medos sua vida pode se transformar numa observação constante do medo e, se estes se ativam, o que se produz é um sistema que se alimenta a si mesmo, um círculo vicioso de que seria difícil escapar, disse a diretora."


Eu? Padeço de autofobia, que é o medo de si mesmo ou de ficar sozinho, também conhecido como monofobia ou isolofobia. #prontofalei (não que eu não tenha falado antes de 2666 diferentes formas)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O reino da pequena literatura

Era uma vez um planeta. Azul. Habitavam lá alguns bilhões de seres. Que, se bem contados, chegavam, certamente, a trilhões. Viviam em desordeira harmonia ou desarmoniosa ordem. Ora a cair, ora a levantar, os seres juntavam-se, dispersavam-se, acorriam quando um deles morria subitamente e acorriam também quando um deles nascia. A eles, se lhes parecia que tanto a morte quanto a vida eram surpresas. Não haviam dominado, portanto, a técnica da frieza e da vã filosofia de ver e crer. Ver a vida e crer que aquilo era convencional. Assistir a morte e lhe avaliar como um fim justo. Era sempre a mesma coisa: vida! Ohhh!!! Morte! Huuuuhhh!!!


Esses seres, certamente, tinham um problema. Sério, na minha prosaica avaliação. Avaliação essa, por decerto, contaminada, visto que eu mesmo estava entre aqueles seres. Portanto, assim, qualquer ato julgatório deixa de ser fiel se participo da trama e tramo contra ela.




Mas isso é uma avaliação minha e eu a faço como bem desejar. E quem quiser que conte outra. O Google contou. Maldito Google. Num futuro antevisto por um escritor do naipe de Will Self (google, by the way). Ah! Uma pausa: Will Self, numa tradição liberal (a faço como desejar, sem usar Google Translate), seria algo como por si mesmo se fará. Combina com ele. Reward and play: num futuro antevisto por um escritor do naipe de Will Self (google, by the way), o Google será deus. Tenho certeza. Ao buscador e empresa de software serão atribuídos poderes de vida e morte, a propósito do estranho estranhamento humano ante nascimentos e falecimentos. O Google terá poderes inimagináveis por ora. Se não for o Google, outra empresa com tendências equivalentes o fará.


Pois que o Google contou. Uma conta mundial. Cheia de tabulações, contas de reduzir, adicionar, variantes, raízes quadradas, noves fora e chegou a um número: 129.864.880. Até o último domingo, dia 8, era esse, de acordo com o modo google de calcular, o número de livros existentes no mundo. Livros, aqui, quer dizer títulos diferentes. Portanto, existem quase 130 milhões de livros diferentes publicados em todo o planeta que, visto de cima, parece, é azul.


Numa Terra que tem 6.861.601.621 (pouco antes da meia-noite desta terça-feira, 10 de agosto), há um livro para cada 0,0189 habitante. Colocado de outra forma, não chegam a 2% o total de livros em relação aos habitantes desse planeta em que os seres são bilhões - se bem contados os considerados 'burros' como animais, vegetais, eis que se chega aos trilhões referidos acima.


Portanto, grassa a estupidez. Não é coincidência. É fato. Leio de 5 a 6 livros por mês e mesmo que lesse de 500 a 600 ou 5.000 a 6.000 a cada semana, não daria conta de reduzir a montanha dos 'sem-literatura' que forma a estranha Babel deste mundo que, se diz, é azul.


Eu o diria, esse mundo, translúcido. Transparente. Falto de impressão, de letras, palavras, orações, frases inteiras. Impressas. Portanto, falta impressão no mundo. E dada a falta de impressão, a impressão que se tem é que nada se expressa. Tudo se exprime, se espreme. E o único caldo que resulta disso é uma tinta que vai rio abaixo, sem a menor possibilidade de preencher brancas páginas, translúcidas mentes de bilhões. O mundo, meu(minha) caro(a), não é azul. É zebrado. De tanta inconsistência e de tanta falta de literatura. Se as pessoas lessem, o mundo seria branco no preto, tinta na página. Consistência. O mundo é um breu!

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Adeus, Saramago!

Goste-se ou não da literatura e até mesmo da pessoa de José Saramago, morto nesta sexta-feira, 18, aos 87 anos, o fato é que o escritor português - feito escritor à idade maior dos 50 anos - renovou a literatura da língua portuguesa - e incluo aqui todos os países de língua portuguesa, os oito que falam e adotam essa língua.




(foto feita pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que era amigo de Saramago, no exílio cinzento de pedra do escritor em Lanzarote, Ilhas Canárias, Espanha)


Eu tomei conhecimento de José Saramago pelo livro "Ensaio Sobre a Cegueira", em 1995. Estava ainda a cursar a faculdade de jornalismo e existia ainda a livraria Belas Artes, no finalzinho da Avenida Paulista, quase confluência com a Rua da Consolação, aqui em São Paulo.


Costumava peregrinar pela Paulista avenida e quedar-me nas estantes da livraria a descobrir, a cada semana, um semblante novo nas capas dos livros. Foi quando fitei Saramago pela primeira vez. Digo fitei como se o tivesse visto porque, a mim é que não me enganam, os livros mostram mais do autor do que seus próprios retratos e até mesmo faces.


E cativou-me Saramago com aquela literatura sem fôlego (os livros do autor conservam a grafia de Portugal). Aos borbotões, Saramago despejava de um tudo: angústia, medo, vida, morte, ódio, amor. E da mesma forma, quase sem respirar, o bebi. Traguei grandes goles. Seguiram-se "A Jangada de Pedra", "Memorial do Convento" (admirável), "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", "Todos os Nomes" (de onde adotei o fio de Ariadne), "A Caverna" (prefiro o original de Kafka); e "As Intermitências da Morte". Li exatamente nessa sequência: de 1995 a 2005, foram dez anos da literatura portuguesa que se me entrou pelo cérebro e poros.


De Saramago tenho, desde então, sabido muito. Que é isso e aquilo. Que acredita nisso mas não naquilo. Que pensa tal coisa mas não a outra coisa. Primeiro Nobel da literatura portuguesa, em 1998, talvez o vulto de Saramago 'nobelizado' tenha encoberto o primeiro Saramago que eu li, lá atrás. Ao ler "A Caverna" e depois "Intermitências", descobri que já os borbotões tinham transformado-se em burburinhos de riacho doce, daqueles que passam de mansinho por debaixo de cálidas sombras verdes.


Perdi o tesão como sói acontecer quando as paixões se aquietam. A excitação não é mais a mesma e as demandas diminuem até virar um fiapo fininho daquilo que um dia foi uma erupção de um vulcão milenar.


Mas olha lá que não estou a desprezar o morador daquela pedra Lanzarote. Cinzento o local que escolheu para se exilar, tornou-se, com o tempo, pedra e cinza ele mesmo, tenho a impressão. Antes disso, porém, para mim foi o magma. Por muito tempo, forjou o meu cimento. Adeus, companheiro lusitano.


Reproduzo abaixo um texto de "A Jangada de Pedra", no qual Portugal se desprega das franjas da Europa e vai singrar Atlântico afora. Tem sido assim, com os portugueses, desde sempre, a singrar mares afora. De vez em quando, uns vem dar nos costados do Novo Mundo. Foi assim com os antigos e foi assim com Saramago também, que tantas vezes esteve entre nós:


"(...) Entretanto, desesperados, no limiar da surdez, os habitantes tinham espalhado pelas ruas e praças da aprazível estância balnear, agora estação infernal, dúzias de bolos de carne envenenados, método de simplicidade suprema, cuja eficácia tem sido confirmada pela experiência em todos os tempos e latitudes. Por junto, não morreu mais que um cão, mas a lição foi logo aprendida pelos sobreviventes, que, em um instante, latindo ladrando e uivando, se sumiram nos campos arredor, onde, sem motivo que se percebesse, em poucos minutos se calaram. Quando os veterinários enfim chegaram foi-lhes apresentado o triste Médor, frio, inchado, tão diferente do feliz animal que acompanhava a dona às compras, e que, por ser já velho, gostava de dormir ao sol, sem cuidados. Porém, como a justiça ainda não abandonou por completo este mundo, decidiu Deus, poeticamente, que Médor morresse do bolo preparado pela dona bem-amada, a qual, bom é que se saiba, tinha no pensamento uma certa cadela da vizinhança que não lhe saía do jardim. O mais velho dos veterinários, diante do fúnebre despojo, disse, Vamos autopsiar, e realmente não valia a pena, porquanto qualquer habitante de Cerbère poderia, se o quisesse, testemunhar a causa mortis, mas o fito oculto da Faculdade, como na gíria do serviço secreto lhe chamavam, era proceder, disfarçadamente, ao exame das cordas vocais de um bicho que, entre a mudez por morte agora definitiva e o silêncio que parecera ser para toda a vida, tivera afinal umas horas de fala e pudera ser igual ao comum dos cães. (...)".

sábado, 24 de abril de 2010

The book is on the table

Meu último post nesta seção foi no dia 12 de dezembro do ano passado. Lá se foram quase cinco meses e a impressão que dá é que não li nesses meses. Ledo engano. Pode faltar tudo na vida. Arroz, feijão e pão. Só não quero que me falte a danada da cachaça literária. Isso nunca.


Apenas para registrar, quando viajei no final do ano, levei comigo seis novos livros e os devorei em pouco menos de 15 dias. Depois, de janeiro para cá, devo ter comprado, por cima, uns 25 novos livros. Eu havia reservado esses livros novos, já lidos, para resenhá-los na seção.


Mas, na mudança de apartamento, misturei novos recém-lidos com outros, novos e velhos, mais remotamente lidos. E fiquei sem referência porque, confesso, me deu preguiça procurar livro por livro em ordem cronológica (tenho o estranho costume de colocar a data de aquisição na primeira página e fazer comentários codificados aos quais somente eu tenho acesso).


Mas não posso deixar de registrar ao menos dois dessas quase três dezenas de livros. Um era um clássico e eu nem sabia. E adoro o prazer que a literatura me dá de me introduzir o novo, sendo o novo um clássico que eu desconhecia. E adoro também o novo, que, por forte teor literário, nasce clássico, numa heterodoxia que apenas a literatura, no meu entendimento, consegue operar.


O clássico ao qual me refiro são os "Contos Completos" - Flannery O'Connor - editora CosacNaify - 715 páginas. Veja a data da aquisição: dia 6 de fevereiro deste ano, dia em que eu estava simultaneamente desalentado e animado. Desalento por decursos da vida que, de vez em quando, nos atira ao relento e lá nos deixa, a sofrer as intempéries de céus e infernos. Animado porque, como se eu fosse um peixe, fui içado daquele pontual poço e trazido à superfície para me equilibrar novamente. Um mês depois, eu mudaria de apartamento. E, dois meses depois, eu mudaria do trabalho em casa, na versão freelancer, para o trabalho da redação, de volta ao convívio dos demais mortais. Céus e terras mudaram, portanto.




Volto ao livro porque, por não escrever com tanta frequência por aqui ultimamente, tendo levemente às divagações. Flannery O'Connor nasceu em 1925 e morreu em 1964. Menos de 40 anos e uma bela obra que os EUA legaram à literatura. Para mim, ler cada um dos contos foi como ouvir o lamentoso jazz, o soul, e algumas influências do folk do sul dos EUA - o "cinturão bíblico".


Os contos de O'Connor, ela mesma uma católica praticante, são estranhos. São permeados pela sombra que ainda pairava no país pós-abolicionista (a escravidão, nos EUA, acabou oficialmente em 1865). Mas os negros continuam escravos dos brancos e assim são vistos. Em alguns contos, trata-se de substituir a mão de obra escrava pelo estrangeiro com prejuízo para o europeu que é visto com desconfiança.


Ao lado do escravismo que se sente em cada conto (e a autora não toma partido, em absoluto, de qualquer lado que seja), há também um fundamentalismo religioso em que todas as ações são relacionadas ao Deus todo-poderoso que há de fazer a convergência de todas as almas, negras e brancas.


Os contos são violentos e crus. Ao contrário do que esperaria de uma autora conservadora e rigidamente católica, o que me passou é que não remissão. Não há perdão para a humanidade. Há, sim, crime e castigo. E sobre o jazz e o soul a que me referi é porque, a determinada altura, tudo parece se transformar num lamento. O lamento que se faz sobre a obra imperfeita que é a humanidade. O lamento de saber que não há como mudar isso. O lamento de chorar sobre isso e sobre si mesmo, dado que a nós nos é dada essa autoconsciência impiedosa. O'Connor é muita coisa mas não é piedosa.


E a autora me chamou tanto com seus jazz e souls que esperei por dois meses, a navegar no Atlântico, a obra "Tudo o Que Sobe Deve Convergir", nome de um dos contos mais impiedosos da obra de O'Connor. Bem, admito que certamente a autora me enfeitiçou porque foi com desprazer que constatei que o livro vindo de Portugal apenas repete alguns dos contos presentes em "Contos Completos". Apenas alguns mudam de nome na transição linguística entre Portugal e Brasil. Para, finalmente, convergirem, ambos os livros, numa coisa só. Oras! Manterei os dois para me lembrar da minha ansiedade quando se trata de livros. Mas, sobretudo, leia O'Connor, não importa se na edição brasileira, portuguesa, norte-americana ou russa!


E os russos, ainda que gélidos e chegados à vodca, sempre estarão no meu coração literário. Antes, no dia 30 de janeiro deste ano, encontramo-nos, o russo e eu, numa prateleira da Fnac. A capa mais pareceria, à primeira vista, uma história boba, quase que primária: um humano com face daquele gato, aquele cujo sorriso se desfaz no ar em "Alice no País das Maravilhas". Mas talvez por conta do sorriso do gato de Alice, fui devidamente convidado a abrir a portinha (em livro, se diz que são orelhas) e ler os indícios daquele estranho mundo gatil. E não emiti nenhum miado de insatisfação. Ao contrário, ronronei ao encontrar excelente literatura. Sim, os gelados e vodqueiros russos nunca me entediam.


O livro é "O Mestre e Margarida" - Mikhail Bulgákov - editora Alfaguara - 453 páginas. O argumento do livro parte do dia em que Satanás e seu séquito chegam a Moscou. É uma alegoria ao regime stalinista, à União Soviética. Pode parecer um realismo fantástico e até parece. Mas o livro consegue se sobrepor a essa definição e devassa um país devastado por um regime linha-dura.




O autor demorou dez anos para concluir o livro, que é a sua obra-prima. Ainda em 1920, teve problemas sérios com a censura soviética e, portanto, escreveu este livro escondido. Doente (morreu aos 59 anos), ditou as últimas revisões à esposa em 1940, poucas semanas antes de falecer. E, 20 anos depois, o livro tornou-se um sucesso na União Soviética e no mundo. Um dos personagens de "O Mestre e Margarida" diz, em algum momento: "Manuscritos não ardem". Pois os manuscritos de Bulgákov não arderam nas fogueiras das inquisições stalinistas mas ardem em chamas no coração ao serem lidos. Excelente!

quinta-feira, 18 de março de 2010

Eruv e a capacidade de se isolar em universo próprio

"Eruv é um conceito judeu, um expediente ritual tipicamente judeu, um golpe baixo em Deus, esse controlador tão sacana. Tem algo a ver com fingir que postes telefônicos são batentes (de portas) e fios são lintéis (acabamentos das portas). Com postes e cordas, você delimita uma área e a chama de eruv e, então, no shabat, é só fingir que esse eruv demarcado é a sua casa.


Assim, você tem como driblar a proibição de carregar objetos num lugar público no shabat e pode ir à escola com dois envelopes de Alka-Seltzer no bolso sem cometer pecado. Com alguns fios e postes e usando de forma criativa muros, cercas, montes e rios, é possível traçar um círculo em praticamente qualquer lugar e denominá-lo eruv.


...concebe-se um artifício que dure até o pôr-do-sol do dia seguinte, uma extensão do grande muro imaginário do eruv. ...um tubo plástico ao lado de dois postes telefônicos para que os residentes possam ir passear com o cachorro sem pôr a alma a perigo."




O trecho acima, mais ou menos reproduzido (mudei algumas palavras para servir ao propósito do post), é do livro "Associação Judaica de Polícia" - Michael Chabon - editora Cia. das Letras - 471 páginas, que eu tenho lido numa morosidade implacável: desde o dia 07 de março de 2009, ou seja, há mais de um ano. Por que? Porque o meu comportamento com os livros é assim: não tem padrão. Ora eu leio num átimo, em menos de 24 horas, um tomo inteiro de 700 páginas, ora fico a ir e vir entre 230 ou 470 páginas de outros volumes. Sou assim e é só.


Mas não é para falar das nuances da minha literatura que transcrevi o trecho acima. E sim do conceito de eruv. Se o autor o identifica como um artifício tipicamente judeu, eu o expando para outras circunstâncias e povos e, inclusive, posso admitir que o praticava, até então, sem saber do que se tratava e tampouco que havia um conceito como esse (eu li esse trecho precisamente hoje).


Porque venho de, pós-leitura, acreditar que eu mesmo construo eruvs à minha volta. Que, ao contrário dos típicos eruvs judeus, não são para evitar pecados e circunscrever o ambiente sagrado do shabat. E sim para circular meu próprio mundo e fechá-lo com cercas e muros feitos de postes e fios que se entrelaçam para, ao final, virar uma teia da qual não saio e ninguém entra.


O meu eruv foi erigido inconscientemente e, tal qual os personagens de Chabon, pode ser expandido na medida em que preciso ampliar os limites do meu próprio cerco. E assim, de poste em poste, de fio em fio, firma-se um eruv imaginário porém real que me detém tal qual cerca elétrica. Ao contrário dos eruvs judeus, no entanto, eu não tenho restrições divinas impostas para que se cumpram os preceitos do shabat e muito menos temo perder a alma por me levar (e não ao cachorro) para passear nos sábados à tarde.


Pior. Meu eruv já tornou-se, em si próprio, o mundo inteiro e eu, por assim dizer, me eruvizei de tal forma que posso atravessar continentes, suponho, sem que incorra no risco de colocar um pé que seja fora das cercanias dessas limitações. Donde concluo que bem eu me converto ao judaísmo e pratique o tradicional eruv na acepção exata do termo ou que pule, atravesse, desconstrua esse eruv que criei sem imaginar que poderia, um dia, ser atingido por tão ampla erupção. Ou erosão. Depende de como você encara tudo isso.

sábado, 12 de dezembro de 2009

The book is on the table

Triste como a vida. Assim avalio este maravilhoso livro. "A Solidão dos Números Primos" - Paolo Giordano - editora Rocco - 284 páginas. Li em dois dias. E é a segunda vez que me surpreendo com um escritor italiano da nova geração. A primeira foi com "Caos Calmo", de Sandro Veronesi.





Mattia, um dos protagonistas, é um gênio da matemática. É irmão gêmeo de Michela que, na mesma proporção do irmão, é opostamente deficiente mental. A outra protagonista é Alice, cujo pai quer torná-la campeã de esqui. Ao sofrer um acidente, Alice fica impossibilitada de realizar o sonho do pai.


Mattia e Alice se encontrarão. Um, o primeiro, desenvolve um estranho andar para se fazer notar cada vez menos pelas outras pessoas: caminha com as laterais dos pés e evita todo e qualquer ruído que o seu caminhar possa causar. A outra, vitimada pelo acidente, tem uma perna mais curta e, por isso, caminha de forma manca. Um e outro se completarão em ambos os andares de forma simétrica. Um e outro ocupam o espaço reservado que fica vago a cada passo de ambos.


"Mattia tinha estudado que entre os números primos existem alguns ainda mais especiais. Os matemáticos os chamam de primos gêmeos: são casais de números primos que estão lado a lado, ou melhor, quase vizinhos, porque entre eles sempre há um número par, que os impede de tocar-se verdadeiramente. números como o 11 e o 13, como o 17 e 19, o 41 e o 43. Com paciência para continuar contando, descobre-se que esses casais logo rareiam. Encontram-se números primos cada vez mais isolados, perdidos naquele espaço silencioso e cadenciado, feito apenas de cifras, e se tem o pressentimento angustiante de que os casais encontrados até ali sejam um fato acidental, que o verdadeiro destino seja mesmo permanecer sozinhos. Então, justamente quando se está prestes a desistir, quando já não se tem vontade de contar, eis que se esbarra em outros gêmeos, agarrados um ao outro. É convicção comum entre os matemáticos que, até onde se possa avançar, sempre haverá outros dois, mesmo que ninguém seja capaz de dizer onde, até que sejam descobertos. Mattia achava que ele e Alice eram assim, dois primos gêmeos sós e perdidos, próximos, mas não o bastante para se tocar de verdade."


Na minha fase atual, sinto que sou como esses números primos gêmeos: sei que existe alguém, em alguma parte do mundo, mas, por um lapso - seja de tempo ou do acaso - jamais encontrarei o primo gêmeo. E, se o encontrar, sempre haverá um outro número par (quer dizer, uma outra pessoa) a me impedir de, finalmente, tocar essa outra pessoa. Portanto, isso é triste. E, portanto, o livro é triste. Como a vida.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Há um tigre em casa que costuma crescer de noite

O Tigre

Há um tigre em casa
que dilacera por dentro aquele que o olha.
E somente tem garras para aquele que o espia,
e somente pode ferir por dentro,
e é enorme:
maior e mais pesado
que outros gatos gordos
e carniceiros pestíferos
de sua espécie,
e perde a cabeça com facilidade,
fareja o sangue mesmo através do vidro,
percebe o medo até da cozinha
e apesar das portas mais robustas.

Costuma crescer de noite:
coloca sua cabeça de tiranossauro
em uma cama
e o focinho fica pendurado
para lá das colchas.
Seu dorso, então, se aperta no corredor
de uma parede à outra,
e somente alcanço o banheiro rastejando, contra o teto,
como que através de um túnel
de lodo e mel.

Não olho nunca a colmeia solar,
os negros favos do crime
de seus olhos,
os crisóis da saliva envenenada
de suas presas.

Nem sequer o cheiro,
para que não me mate.

Mas sei claramente
que há um imenso tigre encerrado
em tudo isso.

(tradução: Plinio Junqueira Smith)



A poesia acima faz parte da obra "El Tigre en La Casa", do poeta mexicano Eduardo Lizalde. Nascido em 1929, Lizalde vive na Cidade do México. A literatura lhe veio da infância: o pai lhe ensinou a ler e construir as frases a partir de um início de sonetos. O tigre, Lizalde o encontrou ainda criança, ao conhecer a figura do tigre de Kipling das histórias em quadrinhos de Tarzan.

Adolescente, foi consumidor voraz de Balzac, Zola, William Blake e Rainer Maria Rilke. O tigre é recorrente na poesia de Lizalde e, por esse mesmo motivo, o poeta é conhecido como "El Tigre". Sobre esse animal, Lizalde disse: "O tigre é uma figura fascinante desde os tempos bíblicos até hoje e não acho que há um escritor que deixou de mencionar o tigre. O tigre é a imagem da morte, destruição e também da beleza; é apenas uma ferramenta metafórica". De forma metafórica ou não, acredito firmemente que há um tigre dentro da minha casa que, com certeza, cresce à noite.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A interpretação dos sonhos



Nudez pública: indica o desejo de viver com mais liberdade e menos responsabilidade (conforme Sigmund Freud). Ou, melhor, enseja a vontade de mostrar quem realmente somos.


Água: representa o inconsciente (segundo Carl Jung). Se estamos a nadar tranquilamente, significa que estamos prontos para imergir nas profundezas d'alma.


Nadar: a água representa as emoções. Nadar em piscina e, portanto, em águas calmas, representa que as emoções estão tranquilas.





Foram esses os elementos de um sonho - não-recorrente, posto que não me recordo de o ter tido antes ou, pelo menos, se o tive, não o registrei a ponto de lembrar quando consciente - que tive a semana passada e sobre o qual comentei aqui: eu estava na minha rua, e subia em direção à Avenida Paulista, a duas quadras de casa. A uma quadra da Paulista, encontrei com um rapaz que descia a rua completamente nu. Estava molhado e deixava as marcas dos pés descalços pela calçada.


Eu o abordei e perguntei se havia passado a ser comum que as pessoas caminhassem nuas pelas ruas. Ele me disse que sim, que ali, na Avenida Paulista, 900 (prédio da Gazeta), havia uma piscina gigantesca em algum lugar do prédio na qual as pessoas nadavam despidas, completamente nuas. E que, portanto, era usual que as pessoas nas redondezas caminhassem nuas em público.


E que, ao terminarem suas aulas de natação, saiam assim, nuas, a pé, para suas casas. Fui eu mesmo conhecer a piscina e vi que era verdade. Claro que também eu comecei a nadar nu. E, ao sair da piscina e do prédio, fiz companhia para outros colegas de natação que caminhavam para todas as direções - Paulista, Joaquim Eugênio de Lima, Santos, São Carlos do Pinhal, Campinas, Brigadeiro - completamente despidos, apenas cobertos pela água da piscina que ainda escorria de seus corpos. E o sonho se resumiu a isso, apenas.





Em nenhum momento do sonho houve qualquer situação de conotação sexual, fosse desejo, um olhar sobre os corpos despidos ou algum tipo de tara. Nada disso: as pessoas que se dispersavam nuas juntavam-se aos demais transeuntes vestidos e uns e outros - pelados e vestidos - mal pareciam se notar, assim como ocorre com a multidão que se cruza na Paulista o tempo todo. Vestida, por enquanto.


Me lembrei imediatamente do sonho e, desde então, tenho recordado detalhes: a água que escorria dos cabelos do menino que encontrei primeiro, o decalque dos pés na calçada, a piscina gigante no número 900 da Paulista (aliás, um detalhe: estudei exatamente neste prédio, no 5º. andar, quando fiz a Cásper Libero), a cor esverdeada dos azulejos, a água límpida e as pessoas a tomarem elevadores com pisos apropriados e a total naturalidade em mover-se despidas.





Por isso, procurei explicações. Tenho a faculdade de me recordar dos meus sonhos com bastante frequência. E, em alguns casos, me são muito nítidos. Foi o que ocorreu. Conversei com algumas pessoas sobre isso mas ninguém me deu uma explicação aceitável.


Ontem, terça-feira, fui à fnac resolver uma dúvida com o HD portátil que adquiri recentemente e, claro, não resisti, subi as escadas e fui direto aos livros. Quando entro numa livraria, raramente sei o que quero. Mas pouquíssimas, quase nulas foram as vezes em que saí sem um livro ou diversos nas mãos.





Não foi diferente desta vez: comprei "A Educação Sentimental" - Gustave Flaubert - editora Nova Alexandria - 413 páginas -, numa edição capa dura primorosa. E já ensaiava deixar para trás os livros quando me dirigi à seção das ciências humanas - Filosofia, Psicologia, Sociologia. E é sério! Um dos primeiros livros com o qual me deparei foi "A Interpretação dos Sonhos", de Sigmund Freud.


Ainda circulei por entre as estantes antes de me decidir. Na prateleira imediatamente em frente a este livro, estava a obra completa do pai da psicanálise. Me agachei para olhar - são, talvez, uns 30 volumes, que compreendem a obra completa do psicanalista - e puxei um dos 30 ao acaso. E, sem surpresa, retirei exatamente "A Interpretação dos Sonhos", volume X (acho, não me lembro, que vai até 1900). Porque o volume XI vai de 1901 a algum ano entre 1920 e 1930.





Não havia engano. Relutei, peguei o livro (edição integral, não a edição de volumes em separado) e perguntei ao atendente se havia mais algum livro daquele disponível. Não, me disse, temos apenas este. A minha relutância se devia ao fato do livro estar com aspecto de mostruário. Certamente, outros potenciais clientes o folhearam por curiosidade e o deixaram. Entre minhas manias, está a de comprar livros o mais minimamente manipulados por outras pessoas. Quase livros virginais.


Voltei ao atendente e insisti e comparei com as edições em volumes separados. Ele me disse que aquele volume que eu tinha nas mãos era o único e integral. Satisfeito em derrubar todas as eventuais restrições que eu mesmo havia colocado, saí e me dirigi ao caixa do andar de baixo. Não sem antes comprar, ainda, a revista "Prazeres da Mesa", edição de novembro, que as tenho quase todas.


O livro que agora jaz na minha mesa - folheei repetidamente e não encontrei exatamente o significado do meu sonho - é "A Interpretação dos Sonhos" - Edição Comemorativa 100 Anos - Sigmund Freud - editora Imago - 595 páginas. Me custou R$ 115. Claro que eu já conheço o livro, cuja reputação está amplamente assentada não apenas na área de psicologia e psicanálise, mas no sentido mais amplo do conhecimento popular. Sobremaneira, as pessoas costumam relacionar com relativa frequência Freud aos sonhos. "Freud explica", dizem, quando se esquecem de dizer "Deus sabe o que faz". Portanto, o livro e teor não são desconhecidos para mim.





Desconhecido é o fato de acontecimentos circulares e sem aparente correlação terem se encadeado de forma que, agora, lerei Freud à luz do meu sonho. Ou, melhor, lerei a obra mais querida do autor (assim considerada por ele mesmo) com olhos de lince, a apurar os contornos, entornos e significados expressos ou ocultos de cada oração e parágrafo do livro em busca de respostas. Se não para o sonho que pontifica este post, para outras buscas.


Postulo, com isto - a aquisição do livro -, nada mais nada menos do que respostas que, aparentemente, o consciente não mas têm dado. Talvez o inconsciente o faça. E, se não o fizer e me deixar com as minhas constantes e inquietantes questões, ainda assim me adicionará mais repertório. Nem que seja para encher linhas de textos como essas.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Ave de bom agouro



Me ocorreu que ave alguma bateu à minha janela ontem, no escuro que acometeu parte desse País. Em meio às trevas, creio que teria sido de bom agouro, e não mau, que um corvo riscasse as paredes do prédio e proferisse mensagens cifradas. Já publiquei parte desse poema aqui no blog mas agora o faço na íntegra porque a noite de ontem o pede.



Pena que não estivesse a chover para que a imagem fosse completada por espectros fantasmagóricos de que somente a imaginação é capaz. Ao leitor que queria ter ficado no escuro, te dedico.




O Corvo

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará jamais.

E o rumor triste, vago, brando,
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto e: "Com efeito
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minha alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora -
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse: a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta:
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais tarde; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos.
Ela, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso.
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela e, de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre Corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto
Movendo no ar as suas negras alas.
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais:
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta,
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é o seu nome: "Nunca mais."

No entanto, o Corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o Corvo disse: "Nunca mais."

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais."

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao Corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera.
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais."

Assim, posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe falava mais; mas se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava,
Conjecturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto,
Onde os raios da lâmpada caiam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso.
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: "Existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No Éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais.
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."

"Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fica no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua,
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o Corvo disse: "Nunca mais."

E o Corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

(de Edgar Allan Poe, na tradução de Machado de Assis feita em 1883)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O Original de Laura

Mais do mesmo: um neurologista brilhante, mas fisicamente pouco atraente, deprimido pela infidelidade da esposa mais jovem, pensa em cometer suicídio. Abordei essa palavra aí atrás ontem, ainda. Mas aqui é ficção: acontece agora, no dia 17 de novembro, o lançamento de um livro inédito de Vladimir Nabokov, 32 anos após a sua morte. O livro sai nos EUA (pela Knopf/Random House) e na Grã-Bretanha (Penguin), depois de 30 anos de hesitação do filho do escritor, Dmitri, que detém os direitos sobre a obra.





Nabokov, conhecido mundialmente por ser autor de "Lolita", havia dado instruções para que os originais fossem queimados após a sua morte, o que nunca foi feito. Acho engraçado isso de as pessoas deixarem instruções para destruir documentos, papéis, cartas e manuscritos. Se a pessoa quer que sejam destruídos, e não 'vazem' para a posteridade, basta ter em mãos um palito de fósforo e algo próximo de uma pira e proceder ao pequeno incêndio de sua obra. Mas, quando se trata de escritores, tenho por mim que a vaidade fala mais alto e o próprio criador é incapaz de dar fim àquilo que criou.





Assim como acontece com "O Original de Laura" ("The Original of Laura"), Nabokov também quis queimar os originais de "Lolita" e foi impedido pela esposa. Em 1955, "Lolita" daria ao autor fama universal e ao mundo um novo significado da palavra 'ninfeta'. Os manuscritos de "O Original de Laura" foram trancados no cofre-forte de um banco na Suíça em 1977, quando o autor faleceu. São 138 cartões (em papel cartolina) definidos pelo próprio escritor como incompletos. Nabokov disse que depois preencheria os vazios. Obviamente, ou não deu tempo ou o escritor preferiu relegar o livro aos arquivos.


A Penguin Classics deve reproduzir os 138 cartões e transcrevê-los numa espécie de edição manual-industrial. Um dos editores da Penguin disse que o livro é engraçado e sombrio e que explora o "ódio a si mesmo e a vontade de desaparecer". Fúnebre, não?


Como o livro não sai agora no Brasil (espero que saia em breve), fiz o post fora da rubrica "The Book Is On The Table", que costuma assinalar apenas os livros que li, e não as postagens sobre livros os quais desconheço. Porque estar sobre a mesa significa, literalmente, estar sobre a minha própria mesa.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Existe prevenção ao ato de tirar a própria vida?

Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas cometem suicídio em todo o mundo anualmente. E as projeções para 2020 são de que esse número chegue a 1,5 milhão de indivíduos. Os dados são da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 2007, eram 780 mil as pessoas que tiravam a própria vida, o que atribuía ao suicídio mais da metade das mortes violentas na Terra. A taxa de suicídios cresceu mais de 60% nos últimos 45 anos e, numa estatística ainda mais avassaladora, calcula-se que a cada suicida, outras 20 pessoas tentaram mas não conseguiram consumar o ato.


Esses números indicam que acontece um suicídio a cada 40 segundos em todo o mundo e que, a se confirmar a expansão desse tipo de morte, em 2020 ocorrerá um suicídio a cada 20 segundos. No Brasil, não há registros oficiais mas estima-se que ocorram 24 suicídios por dia (um a cada hora). Os especialistas, no entanto, afirmam que a taxa deve ser 20% maior (ou quase 30 suicídios por dia). Ainda no Brasil, os homens são os que mais cometem suicídio (três vezes mais do que as mulheres). Mas, por outro lado, as mulheres tentam tirar a vida (sem serem bem-sucedidas) de três a quatro vezes mais do que os homens.





As principais causas do suicídio estão relacionadas a depressão, ansiedade, uso de álcool e de drogas e esquizofrenia. Na edição do jornal Folha de S.Paulo desta quarta-feira, 4, há uma matéria sobre o assunto e uma entrevista com a jornalista Paula Fontenelle, autora do livro "Suicídio: o Futuro Interrompido" - Geração Editorial - 250 páginas. O livro é sobre o pai de Paula, que se matou com um tiro em 2005. A jornalista diz que mais de 90% dos casos estão relacionados a transtornos mentais como depressão e bipolaridade. E que as pessoas que o fazem emitem sinais embutidos em frases do tipo: "A vida não tem mais sentido", "Não consigo entender porque estar vivo" etc.


Paula diz que quando se percebe que uma pessoa quer se matar, deve-se perguntar a ela se pensa mesmo em se matar e levá-la a um psiquiatra que, com complementos químicos (remédios), é o único profissional que pode fazer alguma coisa.





A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), que acredita que suicídio é uma questão de saúde pública, lança hoje uma campanha de prevenção ao suicídio. A ABP distribuirá material informativo para o público leigo, manual de informações para a imprensa e veiculará, em rede nacional, um vídeo institucional de 30 segundos sobre o problema.


Não sei se existe prevenção a esse tipo de atitude extrema. Temo que não. Creio que quem quer se matar, o faz, mais cedo ou mais tarde. E sem emitir sinais. Ou ainda que os emita. Há centenas de casos relatados pelas próprias pessoas na internet (em blogs, redes sociais etc.) que dão todos os sinais de que vão mesmo cometer suicídio. E há aqueles suicídios silenciosos que chocam, causam estranheza e até mesmo preconceito.





(Campanha do Centro de Valorização da Vida - CVV - entidade voluntária que trabalha na prevenção do suicídio e na valorização da vida - veiculada em 1999)


Na minha família, há pelo menos dois casos de suicídio comprovados. Ambos os casos, vistos sob o contexto atual, indicam que as pessoas que os cometeram realmente tinham transtornos mentais. O suicídio é um tema árido e tabu. As pessoas - família e amigos - tendem a se afastar e acreditam mesmo que o suicídio é cometido por pessoas fracas, que 'não tiveram coragem de encarar a vida de frente'. Besteira. Essa é uma resposta um tanto confortável para os que não entendem um comportamento desse tipo, muito mais complexo do que um simples dar de ombros penalizado.


Há uns quatro ou cinco dias, acordei às 5:30 horas sob uma saraivada de gritos que começavam com "Socorro!". Um homem gritava na madrugada e dizia que ia se matar. Obviamente, fez tanto estardalhaço que acordou a família (suponho), os vizinhos e todo o bairro. Em questão de minutos a polícia chegou e silenciou o infeliz. Daqui de casa não dava para ver a cena mas acredito que o homem queria chamar a atenção para um problema específico, e não dar cabo da própria vida.


Quem o faz, repito, simplesmente o faz. Pula de um prédio, se dá um tiro, toma veneno ou remédio em demasia. Não grita, não se comunica. É um silêncio total. Algumas vezes, deixam bilhetes para os parentes e amigos. Outras, nada. Apenas um vazio. Um vazio que fez sofrer a pessoa a ponto de a morte arbitrária ser vista como solução única e um vazio nos que ficam, sob o pendor de uma culpa que nunca cessa. Uma vida que se esvai e outras que ficam, suspensas.


terça-feira, 20 de outubro de 2009

Bedtime or bad time stories: histórias que contam para os adultos dormirem

Histórias para dormir (bedtime stories) ou provocar pesadelos (bad times)? Sabe as velhas canções de ninar? 'Nana neném que a cuca vem pegar, papai foi pra roça, mamãe pro cafezal..." (pode haver variações). Ou a outra: 'Boi, boi, boi da cara preta...'. As histórias têm fundamentos mitológicos e esses mitos estão longe de serem inocentes.





A primeira canção - 'Nana neném...' - pode muito bem significar que a 'cuca' é um monstro pronto a te engolir. O significado sexual é de algo que, antes de te penetrar, te absorve, de forma carnal e visceral. A segunda canção - 'Boi, boi...' - pode remeter diretamente ao mito do Minotauro, do ser com corpo de homem e cabeça de boi, também com forte significado sexual. Ambas são de possessão.






Isso não é uma divagação minha e tampouco o argumento é novo. Qualquer leitura aprofundada de contos de fada (fairy tales), com recorte psicológico, sempre demonstrará que há uma pulsão sexual a mover cada historinha que, aparentemente, é infantil. Mas as histórias infantis são, na maior parte das vezes, de alta carga sexual e, de forma surpreendente, se analisadas, bastante cruéis. Basta lembrar as histórias tradicionalíssimas sempre com uma moral (um aprendizado) a concluí-las.






De forma que, embalados que fomos pelas canções de ninar desde os mais tenros anos, nos acostumamos a fantasiar com 'cucas' e 'bois de cara preta' como entes monstruosos. Que podem ser tanto o feminino (cuca) quanto o masculino (boi) a nos atormentar, precocemente, como duas entidades ao mesmo tempo apavorantes e excitantes.






Tanto que, se bem me lembro, dormíamos com um olho aberto e outro fechado. Medo? Sim, claro. Não havia consciência crítica o suficiente para separar a realidade da fantasia. Mas, ao mesmo tempo, talvez pairasse no ar uma certa expectativa de que ambos os 'monstros' convidados a partilhar de nossas inconsciências sonolentas realmente viessem. Como se olhássemos por entre os dedos.






Incapazes de nos conter ante o pavor e, por um comportamento que é tipicamente humano, potencialmente preparados para o ataque primitivo que seria encetado por tais monstros. Querer e não querer. Temer e desejar.







No final, o desejo ficava por detrás das imagens que projetávamos. Um desejo secreto, guardado no nível do inconsciente. Há um livro, 'A Psicanálise dos Contos de Fadas' - Bruno Bettlheim - editora Paz e Terra - 440 páginas, que aborda bem essa questão do imaginário infantil criado de geração em geração à base de mitos.






Claro que nossos pais não sabiam que, ao transmiti-los, estavam a passar adiante, como receberam, códigos e significados que, se aparentemente não passavam de tolas fantasias, no fundamento continham uma simbologia que, por fim, remeteria a questões ditas adultas: sexo, violência, dominação, força, coerção, luxúria, desejos etc. etc.





Assim se dá que as bobinhas histórias que nos contam quando crianças para ir dormir (durante a fase diurna da vida), à noite (fase noturna) essas histórias convertem-se em sonhos do tipo bad. E bad não com a conotação de ruim. E sim com a conotação de 'malvados', quiçá 'sujos', do tipo que assanham, que atiçam e fomentam desdobramentos outros. É quando as bedtime stories passam a ser bad time stories.


Parte disso sempre esteve evidenciado de uma certa forma por revisitas a certos personagens simbólicos de gerações e gerações de crianças. Assim é que Chapeuzinho Vermelho, criança, é uma meiga netinha. Adulta, entende exatamente o 'crescimento' do lobo e consequências advindas desse fato. Oras, o cinema explora isso há muito tempo.





Em continuidade a essa tradição de tirar do mito infantil a áurea de intocável não é de se surpreender, portanto, que a matriarca dos Simpsons, Marge Simpson, em comemoração aos 20 anos do desenho norte-americano, 'resolva posar nua' para a Playboy igualmente norte-americana. Do outro lado do mundo, em Israel, o artista David Kawena fez a mesma coisa e deu conotação sexual a alguns dos personagens de sangue azul da Disney. Príncipes, heróis e imperadores estão para lá de calientes na versão homoerótica de Kawena.


No caso de Marge Simpson, o desnudamento da personagem, na atual cultura pop, era até mesmo esperado. Já a releitura de alguns dos personagens mais famosos da Disney - Aladin, Peter Pan, os príncipes de Zárnia, Troy Boltcon (de High School Musical), Tarzan etc. - reafirma, no entanto, essa vontade de romper com padrões. E de fazê-lo da forma mais voraz: pela leitura erótica.


Recuperam-se, por esse registro, os antigos mitos da infância (e eu falei de mitos e canções brasileiros mas basta mudar as letras e os personagens; tudo o mais será semelhante) revisitados por adultos que ouviram e maturaram esses mitos até dar-lhes, afinal, a conotação sexual que lhes pertencia desde o início. E quem quiser que conte outra.




segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O saber que permanece apenas na ponta do iceberg

"É apenas a ponta do iceberg", dizemos, quando queremos indicar que, se formos a fundo, existe muito mais do que aquilo que é aparente. Do iceberg, apenas 10% da massa total (ou volume) emergem. É a chamada 'ponta do iceberg'. Os 90% restantes dos blocos de gelo permanecem submersos. Em outra proporção, significa dizer que 1/7 do iceberg aflora e os demais 6/7 ficam ocultos sob a água.



Popularmente, usa-se a expressão 'ponta do iceberg' para fazer referência a algo que aparentemente é simples mas que, de fato, se for investigado ou confrontado com profundidade, a complexidade do assunto, obstáculo ou problema tende a ser muito mais árdua do que, a princípio, pensaríamos que fosse.





(Apenas 10% de um iceberg permanecem expostos na superfície; os 90% restantes estão imersos em mares profundos, penetráveis apenas por aqueles que têm persistência)


Faço uso desse mote para me referir a um artigo do escritor italiano Umberto Eco (crítico literário, professor de semiótica e autor de livros com "O Nome da Rosa" e "O Pêndulo de Foucault"), publicado no jornal "The New York Times".


O artigo de Eco aponta para a superficialidade do conhecimento que vaga, feito um iceberg, nas caudalosas águas da internet. O escritor aponta para uma dessas pontas de iceberg bastante visível: a enciclopédia online Wikipedia ( e observe que a versão disponível para o Brasil é a mesma de Portugal; não existe uma versão da Wikipedia brasileira) me fio na informação única e exclusiva da Wikipedia. Até mesmo porque não faz três ou quatro anos, as minhas fontes de consulta eram outras. Em adição à Wikipedia citada por Eco, acrescento o buscador mais famoso da internet, o Google.





(O globo enciclopédico cujo objetivo é aglutinar o saber humano num só local)


Recorremos ao Google para saber tudo: informações, endereço de determinado restaurante, site da companhia aérea, clima no norte ou no sul, cotação da moeda, preço do iPhone, condições das rodovias, situação no Irã. Não há assunto ou tema que não esteja contido no Google. Mas até que ponto essa dependência pode nos levar a um empobrecimento? Quais são as ferramentas que nos permitem entender a ponta do iceberg e mergulhar até profundas águas para lhe conhecer a base?


Se Eco reprime o uso da Wikipedia, o mesmo valor que o escritor atribui à enciclopédia eu atribuo ao buscador. Claro que ambos facilitam o acesso à informação. Mas trata-se de ter, principalmente, massa crítica (e sonares e radares eficientes) para pescar da rede/web/teia sob a superfície. Ou então estaremos em um processo irrevogável de formação de conhecimento de ponta. De ponta do iceberg, e não de ponta em termos de avanço tecnológico ou científico.





(Esse é o volume em papel que teria a Wikipedia se impressa fosse)


Reproduzo a seguir o artigo de Eco que serve como parâmetro para questionar o quão importante ferramentas como Wikipedia e Google podem ser. Na minha opinião, isso depende de cada um de nós. O meu saber particular eu o absorvo de inúmeras fontes - jornais impressos, revistas, livros, sites noticiosos etc. Para o meu trabalho, o Google é uma excelente ferramenta de localização de dados, fontes e links que me fornecem elementos para eu escrever artigos. E, eventualmente, uso dados da Wikipedia até mesmo para escrever posts neste blog. Mas, lhe asseguro, não me submeto inteiramente a essas ferramentas jamais.


Pode me chamar de antigo, mas prefiro recorrer ao velho dicionário impresso e, sim, aos volumes clássicos da minha própria enciclopédia Larrouse. O papel me dá uma segurança que nunca a tive no cristal líquido da tela do meu computador. E os dados, como se sabe, podem omitir, mentir ou deixar de existir de repente. Ao menos o papel tem uma vida útil equivalente à minha própria e por ora isso me basta. Ao artigo:





(O escritor Umberto Eco, cujos dados na Wikipedia sempre estão incorretos, ainda que ele mesmo os atualize)


"Hoje em dia, as pessoas que precisam checar um nome ou uma data tendem a recorrer à Wikipedia. Para a minoria que ainda não sabe do que se trata, a Wikipedia é uma enciclopédia online constantemente escrita e reescrita por seus usuários. Em outras palavras, se você buscar um verbete como "Napoleão" e perceber que há alguma informação incompleta ou incorreta, você pode se registrar no site, editar o texto e salvar a versão correta na base de dados.


Naturalmente, isso permite que algumas pessoas irresponsáveis e mal intencionadas disseminem informações falsas, mas os milhões de usuários também podem atuar e checar uns aos outros. Se alguém alterou o texto sobre Napoleão Bonaparte, e mudou o lugar de sua morte para Santo Domingo em vez de Santa Helena, outros iriam imediatamente corrigi-lo (e eu acredito que depois que várias pessoas entraram com processos de calúnia contra a Wikipedia, um tipo de conselho editorial foi estabelecido para exercer controle sobre as mudanças que são difamatórias). Nesse sentido, a Wikipedia confirma as teorias do filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce, de uma comunidade (científica) que através de um tipo de homeostase elimina os erros e legitima novas descobertas, e continua, assim, a carregar o que ele chamou de tocha da verdade.


Mas, embora esse controle coletivo mantenha a acuidade do texto sobre Napoleão, será que fará o mesmo para um João da Silva? Para dar um exemplo, vamos observar o texto sobre uma pessoa que é um pouco mais conhecida do que João da Silva, porém menos famosa do que Napoleão - em outras palavras, eu mesmo. Há algum tempo eu corrigi o texto sobre "Umberto Eco" porque ele continha informações falsas. Entre outras invenções, estava escrito que eu sou o mais velho de treze filhos. Isso é verdade no caso do meu pai, não no meu. Todas as vezes que a curiosidade me levou a checar o texto sobre mim, encontrei mais nonsense, então desisti.


Recentemente, alguns amigos informaram-me que o texto da Wikipedia dizia que eu havia me casado com a filha do meu ex-chefe, o editor italiano Valentino Bompiani. Isso não é nem um pouco difamatório, mas no caso de suas filhas - minhas queridas amigas Ginevra e Emanuela - pensarem assim, eu eliminei a informação. Nesse caso não é possível argumentar que isso foi um erro compreensível - como a história dos trezes filhos - ou que simplesmente perpetuou um rumor corrente: ninguém nunca nem mesmo pensou que eu poderia me casar com qualquer uma delas. O editor anônimo da Wikipedia havia modificado o texto para disseminar sua fantasia particular, sem checar a informação com nenhuma fonte.


Então, o quão confiável é a informação encontrada na Wikipedia? Quando eu a uso, emprego as ténicas utlizadas pelos acadêmicos profissionais: leio sobre um determinado tópico na Wikipedia e depois comparo com a informação com material encontrado em três ou quatro outros sites. Se o fato for confirmado por três fontes diferentes, então há uma boa possibilidade de que seja verdade - mas fique atento para os sites que são parasitas da Wikipedia, porque eles simplesmente repetem os erros.


Outro método é ler sobre o mesmo tópico na Wikipedia, mas em outra língua - se o seu Urdu estiver meio enferrujado, você pode experimentar as versões italiana ou francesa. Se elas forem diferentes, você poderá encontrar a contradição. Isso, por sua vez, fará com que você se levante da escrivaninha e consulte uma enciclopédia impressa, apesar de sua fé convicta no virtual.


Esses são métodos de um acadêmico que aprendeu como descobrir os fatos ao comparar as fontes. E os outros? Os crentes? As crianças que usam a Wikipedia para suas tarefas escolares? Tenham em mente que o que eu escrevi aqui sobre a Wikipedia é verdadeiro para qualquer outro site. Tanto assim que já faz um certo tempo que defendo o estabelecimento de um centro de monitoramento da internet no qual um comitê de especialistas conceituados revisaria e avaliaria os sites por sua confiabilidade e precisão.


Mas vamos considerar outro exemplo, um que não envolva um nome histórico como Napoleão (com dois milhões de entradas no Google), mas o de um jovem escritor que trabalhou na obscuridade até um ano atrás, quando ganhou o Prêmio Strega, de grande prestígio literário na Itália. Falo de Paolo Giordano, autor de "The Solitude of Prime Numbers" ("A Solidão dos Números Primos"). Uma busca por seu nome no Google resulta em 242 mil entradas. Como podemos monitorar todos esses sites?


Pensei em monitorar apenas sites dedicados um único autor sobre quem estudantes possam buscar informações com frequência. Mas se alguém fizer uma busca pelo nome de Peirce (o filósofo que mencionei no início), a busca resulta em quase um milhão de entradas.


Então, temos um sério problema que, por enquanto, não tem solução."

Autor e redes sociais | About author & social media

Autor | Author

Minha foto
Redneck, em inglês, define um homem rude (e nude), grosseiro. Às vezes, posso ser bem bronco. Mas, na maior parte do tempo, sou doce, sensível e rio de tudo, inclusive de mim mesmo. (Redneck is an English expression meaning rude, brute - and nude - man. Those who knows me know that sometimes can be very stupid. But most times, I'm sweet, sensitive and always laugh at everything, including myself.)

De onde você vem? | From where are you?

Aniversário do blog | Blogoversary

Get your own free Blogoversary button!

Faça do ócio um ofício | Leisure craft

Está no seu momento de descanso né? Entao clique aqui!

NetworkedBlogs | NetworkedBlogs

Siga-me no Twitter | Twitter me

Quem passou hoje? | Who visited today?

O mundo não é o bastante | World is not enough

Chegadas e partidas | Arrivals and departures

Por uma Second Life menos ordinária © 2008 Template by Dicas Blogger Supplied by Best Blogger Templates

TOPO