O caos calmo dos dias brandos
Voltei! Depois de 18 dias de um estratégico e benéfico recesso, volto em ano novo. Feliz ano novo, portanto. Ano do tigre no horóscopo chinês. Piso neste solo virtual devagar, meio assim sem jeito ainda. Os dedos parecem titubear ante o teclado. Desconhecem-se, dedos e teclas. Bem-feito para ambos. Reais e virtuais, homem e máquina atropelam-se até entrar em novo entendimento. E é sempre assim, não? Sempre quando se volta há uma sensação inicial de estranhamento.
Fui e quando o fiz, escrevi sobre fazer a migração do virtual para o real. Saí das telas para a paleta real. Essa quebra sempre é algo meio rígida: trata-se de atravessar cerca de 400 quilômetros de terra. E nesse percurso, o virtual deixa de sê-lo para, aos poucos, ser tomado pelo real. À cidade sucedem-se os campos. Aos espigões de prédios de São Paulo correspondem as florescentes espigas de milho. Ao cinza da paisagem urbana sobrepõe-se o verde das pastagens, cortadas apenas pelo cinza do asfalto.
Saio sempre de madrugada, a hora das estrelas. Por companhia, pesados caminhões. Por norte, as faixas das pistas que correm junto. Corremos, todos, eu e estrada, eu e o carro. Elevado a Deus ex machina pela potência do motor do automóvel, posteriormente serei reconduzido à condição humana.
Vejo, uma vez mais, o alvorecer. São seis horas da manhã e o dia ainda não sabe se pode tomar o lugar da madrugada. Pálidos raios de sol refletem nos vidros dos carros contrários. Amanhece sem transição. Desço do carro. Apeio, melhor dizer, que estava a montar alguns cavalos.
Faço a transição sem nem perceber: deixei uma mente e um corpo na capital e tomo posse de outro corpo e de outra mente no interior. Dispo-me da armadura. Deixo de ser soldado. Estou de férias. De folga de mim mesmo. Um "eu" alquebrado. Que fique para trás. O primeiro café, as primeiras conversas, o olhar sobre as coisas familiares e ao mesmo tempo temporariamente esquecidas. Uma planta nova, outra antiga que não está mais lá.
Não é que os dias passam. Eles são passados. Deixam-se atravessar. Devagar, brandamente. Tal qual uma massa de pão que descansa no escuro da despensa. O tempo é relativo. Einstein explica melhor do que eu essa sensação de que o tempo voa, de que o tempo não anda, de que as horas são mortas, de que o tempo não cabe na vida. Quem sou eu para discordar dessa liturgia do tempo que varia conforme a companhia, a geografia e a coreografia com o que se faz com o tempo que se tem ou não se tem?
Faço contatos imediatos com a natureza do lugar. É minha terra. São Pedro do Turvo. Mais de cem anos. Mas não de solidão. A cidade tem um eficiente sistema de comunicação: tudo é anunciado e explicitado pelo alto-falante que fica na construção mais alta do lugar: a igreja. Emitem-se notas sobre tudo e todos. Com alcance, calculo, de uns dois quilômetros de circunferência, perímetro mais do que suficiente para todos ouvirmos as notícias que sucedem-se indiferentes aos dias:
- Morreu uma mulher
- Haverá vacina contra a febre amarela
- Foi perdido um pen drive preto com pingente vermelho
- José perdeu todos os documentos
- Velório da mulher que morreu foi adiado para a 1 da manhã
- Mulher precisa de dez doadores de sangue
- Andréa perdeu uma carteira preta com todos os documentos
- Faleceu outra mulher
- Um homem perdeu a calça preta alugada para um casamento (!)
São todos fatos reais. Não inventei nada. São dois os sistemas de comunicação: as emissões da igreja católica e o serviço de alto-falante móvel. Na falta de um, o outro informa do mesmo jeito. Se você está na cidade, saberá, certamente, o que se passa na cidade. Perdem-se documentos a toda hora. Morre-se na mesma proporção.
Creio que deveriam anunciar os nascimentos (já que estamos no período de natal). E o que se acha. Porque para aqueles que sempre perdem sempre os há aqueles que acham. Deveriam anunciar as chegadas. E não apenas as partidas. Os encontros. Uma nota de felicidade. Deveriam tocar Requiem, de Mozart, ou as marchas fúnebres de Chopin ou Wagner. Ao invés disso, a música de fundo para os falecimentos é o Toque de Silêncio militar. Triste. Será que caímos feito soldados no front da vida e por isso precisamos ser encerrados com o toque do silêncio?
E o que você me diz do homem que perdeu as calças? Como assim? Perdeu na debandada? Na fuga? Na cachaça? Ou por distração? Estava acaso vestido com a calça? Ou, alugada a calça, passado o casamento, pensou que era melhor tirar e por outra, de uso cotidiano, para poupar eventuais danos à calça alugada? E, o tendo feito, saiu-se com mais danos que, por certo, a cidade inteira saberá quem as vestia. Coisas de cidade pequena em que os segredos também correm à boca pequena.
Deixo para trás também as notas de perdas (de vidas), de perdas (de documentos) e de perdas (de calças) e ganho (a estrada), ganho (a terra) e ganho (a vida). Estou na vida real, exatos 367 quilômetros depois da minha retirada da beira da Avenida Paulista. Estou nas Três Barras, bairro rural onde, literalmente, fui parido.
De novo, me vem a sensação de estranhamento. E respeito grandemente os cães, que me reconhecem sem pestanejar. Digo melhor: reconhecem em ondas de abanos de rabo e orelhas. Passam-se seis, oito meses, um ano e os cães nos reconhecem com uma exatidão que sempre me deixa perplexo.
Bato a primeira enxadada na terra. Faço fendas na terra, carpo o mato, a terra salta sobre os meus pés, calçados de sandálias Havaianas. E a terra entranha-se nos meus pés. Dos pés, sobe pelas pernas. Transpiro. Suo sal. E o sal volta à terra e eu à terra pelo sal do suor. Faço-me terra, derretido em sal da terra.
A vaca berra, os carneiros balem, os cães ladram, os cavalos zunem, as galinhas cacarejam, o galo canta as horas, os insetos zumbem, os pássaros trilam, as cobras ciciam (imaginação, não as ouvi, propriamente). É um caos. O caos calmo. Caos calmo dos dias brandos. Que acabam, ainda que eu queira que não. Que a teoria de Einstein é marota e nos engana: se queremos o tempo paralisado, aí é que voam as horas. Se o queremos urgente, as horas plainam, escorregadias.
Os voos ariscos das aves não deixam dúvidas. Também os céus com nuvens apressadas avisam: hora de voltar. Cai a noite. E com a noite, ligo o carro. Homem na máquina. Cavalos mecânicos. Apolo das estradas, percorro de volta na sequência: campo, campo, campo, cidade, campo, cidade, cidade, cidade. Voltam as luzes, o asfalto, os carros todos. Deus ex machina em marcha. Deuses porque somos centenas, milhares de faróis feito vagalumes a hesitar nas rodovias. Até entrar na cidade, no ano novo e me enterrar, feito os funerais dos anônimos, com o meu automóvel, na minha garagem subterrânea. Foi bom. Sempre é. Feliz ano novo!
P.S. Ah! Esse da foto sou eu, em versão colorizada pelo sol de verão bravo. Que estou a descamar de tanto sol porque, à maneira das cobras, talvez eu precise mudar de pele assim como mudo de comportamento quando saio à paisana pelo mundo.