Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós
Uma moradora, singelamente, se aproximou da repórter e lhe entregou uma caixa de fósforos. Não quis se identificar e saiu rapidamente. A repórter abriu a caixa de fósforos e dentro havia uma carta de agradecimento aos oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro e da Marinha e passagens do samba-enredo do Carnaval de 1989 da escola de samba Imperatriz Leopoldinense (veja vídeo da música abaixo).
Esse é o trecho, entre tantos, que destaco da ocupação das favelas cariocas pela polícia e Forças Armadas, ou seja, pelo Estado. Porque foi o Estado que deixou isso acontecer e agora precisa agir como se fossemos uma representação de Israel e Palestina, com ocupações de territórios e intifadas.
As pessoas, como a moradora acima, comemoram, agradecem, rezam e acreditam que, agora, o Rio de Janeiro estará livre da pestilência do narcotráfico. Em ação cinematográfica que já dura dias, a ação policial e militar tem sido chamada de "Tropa de Elite 3", como se fosse a continuação do filme que alça a polícia carioca - e o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) - a patamares inimagináveis. O filme, aliás, consagra o comandante do Bope como um verdadeiro herói.
E herói foi uma das palavras escritas pela moradora no bilhete da caixa de fósforos. Mas, por que heróis, se são apenas agentes desde sempre destinados a nos proteger? E por que o Estado deixou a situação da cidade mais linda do Brasil (e quiçá do mundo) chegar neste estado?
Não vejo como heróicos os avanços no Rio de Janeiro. A imagem mais significativa até agora foi a da debandada de bandidos da Vila Cruzeiro para o Complexo do Alemão (que reúne 15 favelas): tudo registrado pelas câmeras da TV (vídeo abaixo). Os bandidos, longe de se constrangerem, acenavam com as armas para mostrar o eventual poder de fogo que têm.
A explicação para o estado de abandono em que se converteram as favelas do Rio (e de São Paulo, do Recife, Salvador, Fortaleza, Manaus...) é uma só: aonde o Estado não exerce o papel de Estado, outros o farão. No Rio, além dos bandidos do narcotráfico, as pessoas ainda convivem com as milícias, que, na minha opinião, não diferem em grau algum dos bandidos. Pois que milícias não são um poder constituído. São ilegais e, portanto, estão à margem do Estado de direito, assim como estão os marginais.
Não, não celebro ao ver a transmissão em tempo real dessa peculiar Guerra do Golfo brasileira. Me entristeço. Porque estamos a celebrar como se fosse um salvo-conduto para um novo mundo. Obviamente, isso não ocorrerá porque a raiz continua podre. A superfície pode até parecer limpa. Mas, se o subterrâneo que alimenta a raiz não for eliminado, nada mudará. Será apenas o clamor desta operação. Porque o fundamento tem raízes profundas em toda a estrutura desta que se quer uma Nação, que se quer um ator global, com influência no mundo civilizado.
Trabalho ao lado de um outro complexo de favelas em São Paulo. São as favelas do Jaguaré - Rocinha, Moinho, Diogo Pires, Nova Jaguaré (considerada a maior de São Paulo) e outras que nem se sabe ao certo os nomes. É o Complexo do Jaguaré. Eventualmente, à tarde, ouve-se o pipocar de fogos na região das favelas. No Brasil, qualquer um de nós sabe que é o sinal para avisar que novos carregamentos de drogas chegaram. Isso acontece em qualquer lugar do País, inclusive na minha cidade natal que tem, ela própria, a rua do narcotráfico.
Não importa para onde se olhe, portanto, a capilaridade da violência é superior a qualquer outro sistema no Brasil. A violência - drogas, armas, roubos, assassinatos - tem densidade mais alta do que a água, a luz, o telefone, os esgotos. É o maior feito desse País: a inclusão social pela violência. É apenas nesse nível que, verdadeiramente, somos, classes A, B, C, D e E, todos iguais, enfim, sob as asas que se querem da liberdade, mas são, verdadeiramente, da violência.