Os membros amputados das ausências
Em conversa com uma conhecida sobre uma recente cirurgia da coluna a que ela se submeteu, falávamos sobre a dor. Sobre o processo lento de cicatrização e as dores reais e não-reais que acompanham pelo resto da vida as pessoas que, por acidente, doença ou qualquer outro motivo, têm que amputar partes do corpo.
Essa senhora fez a cirurgia há algum tempo e, segundo exames e procedimentos médicos, ela está, na teoria, curada. Portanto, a dor que sentia pré-cirurgia deveria ter sido extinta. Mas não foi. Não, não se trata de erro médico. Ela me disse que o médico lhe explicou que a despeito do corpo ser regenerado via intervenção cirúrgica, o cérebro demora muito mais tempo para registrar o fato e, numa espécie de memória da dor, conserva aquele registro específico e inclusive envia os comandos para o corpo como se a dor ausente ainda estivesse presente.
Claro que isso me deu ensejo para digressões outras sobre as dores. As doloridas cicatrizes físicas e de alma. Me recordei imediatamente da boneca Emília, personagem famosa da série "Sítio do Picapau Amarelo", de Monteiro Lobato. Em algum livro, Emília começa a recortar as sombras das pessoas. Por pura pirraça. E as pessoas começam a ficar com buracos nas sombras. Como se estivessem retalhadas. Esburacadas em suas sombras, revoltam-se até descobrir que Emília é autora de tais roubos de sombras. Somente agora me dou conta da metáfora eloquente do roubo de sombras.
Com quê então as pessoas podem ficar sem sombra? Como assim? A sombra é o reflexo e a consciência de nós mesmos, tal qual um espelho. Um negativo de nossos corpos. Se não projetamos sombras, logo, não existimos?
Vou mais longe com a dor do membro. Se no caso da senhora a cirurgia foi reparadora para o corpo, o cérebro, atrasado, ainda faz com que ela se lembre vivamente da dor pregressa. Engraçado que, conscientemente, ela compreende todo o processo, da cirurgia à reparação (se é que existe conserto para o corpo, coisa de que eu duvido, enfim). Segundo me disse, o cérebro preparou-se para a dor e a fixou. Portanto, interiorizou aquela dor em algum lugar. E, num processo de exteriorização, agora tem que ser educado para expelir esse registro fotográfico de uma dor que não está mais ali.
A ausência de sombra provocada pela boneca Emília e a extinção da dor da senhora por meio da cirurgia equivalem-se: em comum, ambas, apontam para o que não existe, para o ausente. As pessoas sem sombras e a senhora sem dor, no entanto, são enganadas. As primeiras porque sentem-se amputadas verdadeiramente de sua natureza essencial, que consiste em emitir sombra. A segunda porque, tendo tido a dor amputada, de fato ainda a conserva como se real fosse.
Donde presumo que as ausências das pessoas são como sombras recortadas e como membros consertados: nos doem como se reais fossem, por mais que o corpo, o coração e a mente registrem o contrário.
É como se, ao pegar o exemplo do roubo das sombras, as pessoas que se nos subtraem de nossas vidas nos amputassem daquela parte. Daquele específico registro espacial que a pessoa ocupava e que, ao proceder o corte cirúrgico da separação, se vai, como a coluna defeituosa da senhora, mas não vai, de alguma forma. Pior: não se vai nunca. Nem o cérebro, com a espantosa capacidade de adaptação de que é fornido consegue expulsar o registro da ausência.
Fica-se, assim, como uma pessoa que teve uma perna ou braço amputados e que é capaz de sentir, anos a fio, a unha nas pontas dos dedos, a coceira indelével que faz formigar os dedos dos pés. Também a ausência física das pessoas, portanto, cria zonas de sombras, essas sim sombras não-reais, sombras de pedaços amputados da vida.
Como conviver com aquele pedaço que foi deslocado? Que, se pelas leis da física, não ocupava o mesmo espaço, mas pela lei da intimidade, ocupava o mesmíssimo espaço? E que, mesmo ausente, deixa ali do lado a marca da sua presença? Como lidar com as amputações a que somos submetidos (e que submetemos, por certo) e fazer com que cérebro e coração as registrem? Que não tenham dores por algo que, teoricamente, não existe?
Queria ser como a boneca Emília e cortar e recortar esses espaços-crateras. Extirpar de uma vez esses membros virtuais que coçam e formigam uma vida inteira, sem possibilidade de regeneração. Pois que essa dor, o cérebro, tão ágil para reabilitar o corpo conforme as circunstâncias, não aprendeu ainda a curar.