Meu rugido dominical
A universidade, nos moldes universais como a conhecemos nos dias de hoje, nasceu no ano de 859 em Fez, capital do Marrocos: a Universidade de Karueein, naquela capital, é considerada a mais antiga do mundo. Depois, na sequência, vem a Universidade de Al-Azhar (Cairo, Egito), fundada em 988; a Universidade de Bolonha (Bolonha, Itália), uma das mais conhecidas da Europa, nascida em 1088 (e esses dias entrevistei um executivo italiano que estudou lá e me disse maravilhas sobre esse centro do saber); a Universidade de Paris (Paris, França), fundada em 1090 (em 1970, foi partilhada em 13 diferentes universidades); a também famosa Universidade de Oxford (Oxford, Inglaterra), de 1096; a Universidade de Modena (Modena, Itália), de 1175; a não menos célebre Universidade de Cambridge (Cambridge, Inglaterra), de 1209; a Universidade de Salamanca (Salamanca, Espanha), de 1218; a Universidade de Montpellier (Montpellier, França), em 1220; e a Universidade de Pádua (Pádua, Itália), de 1222. Essas são, conforme os registros oficiais, as dez mais antigas universidades do mundo.
Nos países de língua portuguesa, a mais antiga instituição é de 1290, a Universidade de Coimbra, em Portugal. Foi fundada em 1290 em Lisboa e transferida para Coimbra em 1537. No Brasil, a universidade mais antiga, no contexto de faculdade, é a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, de São Paulo, fundada em 1827, e incorporada pela Universidade de São Paulo (USP) em 1934. Antes disso, algumas unidades independentes já funcionavam no País: em 1792, nascia a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, no Rio de Janeiro, que, atualmente, integra a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 1808, foram criados dois cursos de medicina: no Rio de Janeiro (que também seria incorporado pela UFRJ) e em Salvador, que passaria a fazer parte, mais tarde, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Essa longa introdução é para contextualizar os centros de saber do conhecimento mundial. Pressupõe-se que o ambiente acadêmico é o gerador do conhecimento formal, farol que irradia a luz (portanto, o iluminismo) que extingue as trevas (idade do obscurantismo, ou medieval) que alimentam almas que não detêm o conhecimento formal. A Idade Média foi um período em que prevaleceu o medo e quase nenhuma disseminação do saber culto. Período longo: foi de 476 (século V) a 1453 (século XV). Durante esse tempo, surgiram as dez primeiras universidades mundiais, conforme relacionei acima.
E foram essas instituições que trabalharam as mentes temerosas e difundiram luzes que culminariam, a partir de 1660 (final do século XVII), com o período histórico chamado Iluminismo, que durou até 1700 (início do século XVIII).
Portanto, em termos históricos, temos, entre o ano de 859 até hoje, 2009, 1150 anos de estabelecimento do conhecimento formal. Tempo suficiente para que o mundo e o homem crescessem cultural e socialmente. Mas os brados de 'Puta! Puta! Puta!' emitidos por 700 alunos da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban), da cidade de São Bernardo do Campo, o B do ABC que circunda a capital São Paulo, fizeram com que retroagíssemos os 1150 anos em poucos momentos e nos lançássemos, de repente, de volta às trevas. Uma burca moral encobriu o burlesco provincianismo de universitários e fez com que o obscurantismo suplantasse o iluminismo no presente ano de 2009, ao qual definimos como contemporâneo.
O caso aconteceu há pouco mais de uma semana, no dia 22 de outubro, e envolveu uma aluna de 20 anos que compareceu à universidade trajada de um microvestido rosa, com as pernas nuas à mostra, saltos altos e maquiagem e os 700 colegas do período noturno da Uniban. E foi simples assim: a multidão enfurecida atacou a colega porque ela estaria vestida (despida?) fora do 'contexto' considerado usual. A estudante somente conseguiu sair da universidade porque a polícia foi chamada e, sob a escolta de cinco policiais, a estudante, finalmente, escapou à turba moralista. Vídeos estão disponíveis na internet, a despeito do esforço da universidade de retirá-los do ar.
Não foram poucos os colegas universitários que registraram o evento em fotos e filmes e, graciosamente, dispuseram esses registros internet afora. Poucos foram aqueles que a defenderam e tentaram protegê-la. Para sair da faculdade, a aluna teve que vestir um jaleco (espécie de uniforme dos professores). Horas antes, a mesma estudante havia tomado um ônibus e feito um trajeto de duas horas até a universidade sem ser molestada por passageiros.
O episódio teve mais desdobramentos, inclusive estendido à família da estudante. Li, por esses dias, uma análise 'sociológica' desse caso no qual a especialista, uma psicóloga, apresentava um argumento baseado na sexualização: a menina 'gostosa' que provoca o desejo dos homens e a inveja das mulheres e que, no ambiente da universidade, 'não pode se trajar feito uma puta (prostituta), ainda que, fora dali, os mesmos colegas farão de tudo para cortejar as 'putas' que são, na verdade, as colegas universitárias da estudante vestidas tal qual a 'puta'. Não sei se concordo com a explicação da especialista.
Para mim, o caso revelou, uma vez mais, o quão provincianos somos, a ponto de uma veste causar tanta confusão. Me lembrei que, na França, um estado laico, o governo emitiu lei para proibir o uso da burca pelas estudantes muçulmanas que vivem naquele país. Aqui, no Brasil, país dos minúsculos biquínis fio dental, asa delta, avião e outras variações, uma estudante 'séria' de universidade não pode se produzir e frequentar a instituição como se fosse para uma festa noturna. Ou a famigerada 'balada', onde tudo é possível.
Comentei no Twitter que, na cotação da escala social, os universitários estavam em baixa e os pedreiros em alta. Isso é uma referência, creio que particularmente brasileira, segundo a qual os pedreiros, historicamente, chamam de 'gostosa' a mulher que passa em frente à obra. É um fato, referendado por várias amigas minhas. Inclusive, algumas defendem que, quando em queda de auto-estima, basta passar em frente a uma obra para ser 'elogiada' e sentir-se melhor. Pode ser machista, mas, asseguro, sem machismo, que muitas das minhas amigas gostam. Desde que o fato não descambe para o grosseiro, dizem.
Toda a agitação que se seguiu (e ainda se segue) ao caso da Uniban tem a ver com a burca moral que a média dos brasileiros (homens e mulheres) quer vestir nas mulheres e homens que 'ousem' desafiar o status quo social. Como exemplo (verídico), um homem que queira desfilar na Avenida Paulista ou nas pretensas modernas ruas dos Jardins (a área mais nobre da cidade de São Paulo) trajado com a kilt escocesa, será escorraçado, xingado e passará por ridículo. Outro exemplo (também verídico): de certa feita, vi dois homens (turistas alemães, me pareceu) na rua da Consolação (nos Jardins) com calças de couro (leather) e respectivas nádegas à mostra. Momentaneamente, em que pese o fato da Consolação (ao menos naquela época) ser uma rua de 'baladeiros' e ponto de encontro de gays, todo mundo parou para ver os dois passarem. Nunca vi a rua tão silenciosa quanto naquela noite.
Portanto, o episódio da universidade reafirma o preconceito e a moral cristã de jovens (universitários têm, em média, entre 19 e 25 anos) que condenam uma colega pelas vestes que usa num ambiente e, simultaneamente, 'em local apropriado', a desejam exatamente pelo uso dessas vestes. As burcas morais estão por aí e esse acontecimento simboliza apenas mais um registro de preconceito. Exatamente como aquele outro, também dessa semana que passou, pelo qual o político afirmou que participar de paradas gays provoca câncer de mama em gays. Não vou entrar nessa história porque não tem mais fim. Mas ambos os fatos equivalem-se em quão levianos podemos ser ao pregar uma falsa moral num ambiente 'iluminista' e agir bem distintamente em locais 'escuros' como dark rooms, danceterias e afins.
Bem o disse o compositor Lupicínio Rodrigues na canção "Esses Moços Pobres Moços": "...Saibam que deixam o céu por ser escuro/E vão ao inferno/A procura de luz...". Esses moços universitários - meninas e meninos - precisam, pois, dar uma voltinha no inferno real da vida para, talvez, absorver alguma luz que clareie seus medievais conceitos.
4 Comentários:
Vi os videos e também fiquei chocada.
Tudo horrível: a moça e seu modelito de gosto altamente duvidoso (apesar de defender até a morte o direito que ela tem de se vestir como bem entenda) e a reação, ainda pior, dos colegas "de nível superior".
Onde é que vamos parar, Mr. Red?
Putz.
Gentil Carioca, creio que não vamos parar. Vamos adiante e cada vez piores. Estou num momento de total descrédito das instituições e da maior parte das pessoas e, realmente, não consigo me confortar e aos demais com um futuro menos sombrio. Beijo!
Olá Red
só hoje aqui cheguei e deparo com 9 textos teus para ler, e eu, mesmo que os não venha a comentar, lei-os sempre pois gosto muito da descrição que fazes dos assuntos.
Mas vamos ao tema deste primeiro texto; fazes uma muito boa abordagem sobre o aparecimento das primeiras universidades e aqui aprendi várias coisas, pois não sabia que as primeiras tinham sido criadas no norte de África, o que afinal tem toda a lógica, devido à cultura árabe ser a dominante, no tempo. Também e quanto à nossa Universidade de Coimbra, da qual sabia, claro, a data da fundação, fiquei admirado de ter aparecido tantos anos depois de outras universidades europeias, habituado à ideia de que era uma das mais antigas, imaginava-a entre as primeiras...
E depois fazes uma referência muito acertada ao obscurantismo da Idade Média (correspondendo ao aparecimento das primeiras universidades) e eu que gosto muito de História, sempre tive um enorme preconceito acerca desse período, mas tenho que concordar que afinal, foi nesse tempo que se lançaram as bases, que em épocas mais "iluminadas" nos transmitiram o saber; estava muito focado que o saber na Idade Média estava confinado à Igreja e que era esta a única referência cultural da época.
Sobre o caso da estudante da Universidade de S.Paulo, não me vou alongar muito: é triste ver que é precisamente num local em que seria pressuposta uma maior tolerância no que respeita aos hábitos, que tal tenha acontecido. E eu apenas me interrogo - será a forma de vestir que identifica a puta? Afinal o velho ditado que sempre me ensinaram, está errado; é mesmo o hábito que faz o monge...
Abraço.
Pinguim, pois também eu adoro os assuntos relativos à história e é por isso mesmo que sempre me alongo nessas abordagens. A Idade Média, da qual tendemos a ter preconceito por relacioná-la a um período obscurantista, não deve, na minha opinião, ficar confinada a essa avaliação. Foi também geradora de grandes transformações para a humanidade. E quanto ao caso da universidade de São Paulo, isso apenas evidencia o quanto o nosso nível universitário se deteriorou, assim como todos os demais níveis da educação no Brasil. Agora, se o hábito faz o monge, temos cá um mau hábito: o de vestir nos demais aquilo que não queremos vestir em nós mesmos. Os velhos hábitos demoram para serem despidos. Abraço!
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