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quarta-feira, 23 de julho de 2008

Perdi a cabeça

Amanheci sem rosto. Senti uma leveza, ao me espreguiçar, e não senti os movimentos correspondentes da boca, dos olhos, a coceira no nariz, o arquear das sobrancelhas, o difícil e penoso abrir dos olhos depois da semi-morte do sono.


Desconfigurado, me senti leve. Sem necessidade da máscara. Como bônus, não mais me ver ao espelho. A princípio estranho, me dei conta de que a opacidade era bem-vinda. Porque, muitas das vezes, reconheci, me olhei ao espelho e não vi nada.

Sem rosto, não havia mais a fileira de dentes para a obrigatória escovação. Os cabelos, que os quis longos, curtos, nenhum, lisos, ondulados, coloridos, negros, desfiados ou acalmados pela pomada, já não faziam sentido.

Definitivamente sem rosto, iniciei o dia. Não o sabia claro ou cinzento, ensolarado ou nublado. Perdi, a um só tempo, quatro dos cinco sentidos: fala, audição, visão e paladar. Restou-me o tato.


Que fazer privado de tantos sentidos? Claro, pela sua lógica cartesiana, você me pergunta: mas, você consegue continuar a pensar sem cérebro? Claro que sim, respondo, da minha lógica ilógica. Pois que o cérebro me vazou para a barriga no processo de perda de rosto.

E pensar com a barriga dói, confesso. Aquela massa cinzenta que olha para a direita e enxerga a esquerda, que constrói respostas elementares ao menor sinal de perigo, se alojou na minha barriga. Que, com isso, ganhou uma dimensão extra, protuberante, uma camada a mais na cebola que já é redonda.

E pensar com a barriga efetivamente dói. Livre da cabeça, acabaram-se as dores de cabeça. Intensificaram-se as dores na (não de) barriga. Não é fácil conduzir corpos estranhos na barriga. Ouvi risadas das mães?

Com tanta perda, concluí que havia ganho mais no menos: ver o nada, ouvir o nada, sentir o nada, falar nada. Quanto ganho! Havia sido premiado, escolhido, era um iluminado (não o sabia porque não o podia ver, mas, a barriga me dizia que sim).


Poeticamente, avaliei minha nova situação. Como fui despojado de várias vestes simultaneamente, haveria alguns benefícios: sem boca, sem palavras e sem comida, logo, seria considerado ponderado, porque sem argumentação e aquiescente. Por etapa, magro, no pressuposto de que não haveria mais comida. Talvez sondas intravenosas com soros protéicos.

Sem olhos, perderia a faculdade de avaliar a autenticidade do outro pela intensidade do olhar. Em contrapartida, ganharia ao deixar de ver o feio.

Sem ouvidos, perderia porque não haveria mais música. Ganharia ao deixar de ouvir os ruídos adjacentes e dispensáveis. Não mais ouvir o telefone tocar, grande ganho! Finalmente, um mundo de silêncio. Mas, as vozes interiores ainda assim se fariam ouvir, dado que o cérebro acondicionado na barriga processava febril as sinapses.

Acordei bruscamente e, pelo tato, toquei meu rosto. Registrava que havia sobrado apenas o tato. Não tive coragem de abrir os olhos, apurar os ouvidos e engolir a saliva. Por instantes, me privei automaticamente dos quatro sentidos perdidos. Tive um pavor momentâneo de tê-los perdido. Em simultâneo, me arrepiei de pensar que era apenas uma sensação. E era. Entre a perda e o resgate da cabeça, não pude mensurar o tempo. Pode ter sido uma eternidade ou segundos. A teoria da relatividade deve explicar. O fato é que nesse intervalo de tempo desconhecido, fui um sem-cabeça, uma aberração para os padrões humanos. 

O arrepio do susto me conduziu ao arrepio do frio. Me levantei, olhos abertos, ouvidos afinados, boca em "O" de alívio/decepção. Fui ao banheiro. Me conferi no espelho. A face do espelho me devolveu minha face. Estava tudo lá. Havia também um sinal: ?

(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência.)

3 Comentários:

Beatriz Saraiva disse...

Vc pode ter perdido tudo, menos o coração. Talvez, por isso a capacidade de emocionar-se e emcionar...Queria te falar que também do filme "A vida secreta das Palavras". Fiquei impressionada com os silêncios. Achei fantástico como foi utilizado. Só o silêncio para dar o impacto da palavra na hora que ela vem. É por causa desse silêncio que temos a dimensão da violência do que é dito.

Bjos. Continuo por aqui, lendo vc...
Bia

Beatriz Saraiva disse...

Vc pode ter perdido tudo, menos o coração. Talvez, por isso a capacidade de emocionar-se e emcionar...Queria te falar que também do filme "A vida secreta das Palavras". Fiquei impressionada com os silêncios. Achei fantástico como foi utilizado. Só o silêncio para dar o impacto da palavra na hora que ela vem. É por causa desse silêncio que temos a dimensão da violência do que é dito.

Bjos. Continuo por aqui, lendo vc...
Bia

Redneck disse...

Maíra, eu sempre penso no silêncio como um poder, um oculto mistério. Se fico no silêncio total, temo as reverberações. Quisera eu atingir o nirvana dos monges budistas para compreender no silêncio as coisas. Como não sou monge e tampouco cheguei ao nirvana, permaneço no barulho insistente da cidade para extrair disso algum silêncio. Ah! E quem disse que eu não perdi meu coração? Pedaços dele foram encontrados destroçados, segundo notícias que me deram outros corações fragilizados. Beijo!

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Redneck, em inglês, define um homem rude (e nude), grosseiro. Às vezes, posso ser bem bronco. Mas, na maior parte do tempo, sou doce, sensível e rio de tudo, inclusive de mim mesmo. (Redneck is an English expression meaning rude, brute - and nude - man. Those who knows me know that sometimes can be very stupid. But most times, I'm sweet, sensitive and always laugh at everything, including myself.)

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