Perdi a cabeça
Amanheci sem rosto. Senti uma leveza, ao me espreguiçar, e não senti os movimentos correspondentes da boca, dos olhos, a coceira no nariz, o arquear das sobrancelhas, o difícil e penoso abrir dos olhos depois da semi-morte do sono.
Desconfigurado, me senti leve. Sem necessidade da máscara. Como bônus, não mais me ver ao espelho. A princípio estranho, me dei conta de que a opacidade era bem-vinda. Porque, muitas das vezes, reconheci, me olhei ao espelho e não vi nada.
Sem rosto, não havia mais a fileira de dentes para a obrigatória escovação. Os cabelos, que os quis longos, curtos, nenhum, lisos, ondulados, coloridos, negros, desfiados ou acalmados pela pomada, já não faziam sentido.
Definitivamente sem rosto, iniciei o dia. Não o sabia claro ou cinzento, ensolarado ou nublado. Perdi, a um só tempo, quatro dos cinco sentidos: fala, audição, visão e paladar. Restou-me o tato.
Que fazer privado de tantos sentidos? Claro, pela sua lógica cartesiana, você me pergunta: mas, você consegue continuar a pensar sem cérebro? Claro que sim, respondo, da minha lógica ilógica. Pois que o cérebro me vazou para a barriga no processo de perda de rosto.
E pensar com a barriga dói, confesso. Aquela massa cinzenta que olha para a direita e enxerga a esquerda, que constrói respostas elementares ao menor sinal de perigo, se alojou na minha barriga. Que, com isso, ganhou uma dimensão extra, protuberante, uma camada a mais na cebola que já é redonda.
E pensar com a barriga efetivamente dói. Livre da cabeça, acabaram-se as dores de cabeça. Intensificaram-se as dores na (não de) barriga. Não é fácil conduzir corpos estranhos na barriga. Ouvi risadas das mães?
Com tanta perda, concluí que havia ganho mais no menos: ver o nada, ouvir o nada, sentir o nada, falar nada. Quanto ganho! Havia sido premiado, escolhido, era um iluminado (não o sabia porque não o podia ver, mas, a barriga me dizia que sim).
Poeticamente, avaliei minha nova situação. Como fui despojado de várias vestes simultaneamente, haveria alguns benefícios: sem boca, sem palavras e sem comida, logo, seria considerado ponderado, porque sem argumentação e aquiescente. Por etapa, magro, no pressuposto de que não haveria mais comida. Talvez sondas intravenosas com soros protéicos.
Sem olhos, perderia a faculdade de avaliar a autenticidade do outro pela intensidade do olhar. Em contrapartida, ganharia ao deixar de ver o feio.
Sem ouvidos, perderia porque não haveria mais música. Ganharia ao deixar de ouvir os ruídos adjacentes e dispensáveis. Não mais ouvir o telefone tocar, grande ganho! Finalmente, um mundo de silêncio. Mas, as vozes interiores ainda assim se fariam ouvir, dado que o cérebro acondicionado na barriga processava febril as sinapses.
Acordei bruscamente e, pelo tato, toquei meu rosto. Registrava que havia sobrado apenas o tato. Não tive coragem de abrir os olhos, apurar os ouvidos e engolir a saliva. Por instantes, me privei automaticamente dos quatro sentidos perdidos. Tive um pavor momentâneo de tê-los perdido. Em simultâneo, me arrepiei de pensar que era apenas uma sensação. E era. Entre a perda e o resgate da cabeça, não pude mensurar o tempo. Pode ter sido uma eternidade ou segundos. A teoria da relatividade deve explicar. O fato é que nesse intervalo de tempo desconhecido, fui um sem-cabeça, uma aberração para os padrões humanos.
O arrepio do susto me conduziu ao arrepio do frio. Me levantei, olhos abertos, ouvidos afinados, boca em "O" de alívio/decepção. Fui ao banheiro. Me conferi no espelho. A face do espelho me devolveu minha face. Estava tudo lá. Havia também um sinal: ?
(Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência.)
3 Comentários:
Vc pode ter perdido tudo, menos o coração. Talvez, por isso a capacidade de emocionar-se e emcionar...Queria te falar que também do filme "A vida secreta das Palavras". Fiquei impressionada com os silêncios. Achei fantástico como foi utilizado. Só o silêncio para dar o impacto da palavra na hora que ela vem. É por causa desse silêncio que temos a dimensão da violência do que é dito.
Bjos. Continuo por aqui, lendo vc...
Bia
Vc pode ter perdido tudo, menos o coração. Talvez, por isso a capacidade de emocionar-se e emcionar...Queria te falar que também do filme "A vida secreta das Palavras". Fiquei impressionada com os silêncios. Achei fantástico como foi utilizado. Só o silêncio para dar o impacto da palavra na hora que ela vem. É por causa desse silêncio que temos a dimensão da violência do que é dito.
Bjos. Continuo por aqui, lendo vc...
Bia
Maíra, eu sempre penso no silêncio como um poder, um oculto mistério. Se fico no silêncio total, temo as reverberações. Quisera eu atingir o nirvana dos monges budistas para compreender no silêncio as coisas. Como não sou monge e tampouco cheguei ao nirvana, permaneço no barulho insistente da cidade para extrair disso algum silêncio. Ah! E quem disse que eu não perdi meu coração? Pedaços dele foram encontrados destroçados, segundo notícias que me deram outros corações fragilizados. Beijo!
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