Saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou
Você conhece efetivamente alguém que tenha saído de casa para comprar cigarros na padaria ou no bar da esquina e nunca mais voltou? Alguns tendem a afirmar que isso é uma lenda urbana. Outros conhecem alguém que conhece alguém que... Eu não conhecia ninguém até a semana passada...
Bem, o fato é que, anualmente, no Brasil, desaparecem mais de 200 mil pessoas entre adultos, crianças e adolescentes. E, desses, entre 10% e 15% (20 mil e 30 mil) jamais retornam a suas casas. É muita gente. Os números são da Associação Brasileira de Busca e Defesa das Crianças Desaparecidas (ABCD), mais conhecida como Mães da Sé.
O tema me ocorreu porque o filho de uma conhecida sumiu na última segunda-feira e ficou 'desaparecido' por 24 horas. E o que ele fez foi justamente isso: saiu para comprar cigarros no bar da esquina, sem documentos, de chinelos, bermuda e camiseta e sumiu!
Ficou mais de 24 horas numa zona cega, sem que a mãe soubesse o que lhe havia acontecido. Claro que o desenrolar da história foi algo mais prosaico: bêbado, perambulou sem rumo pelas ruas e foi bater na casa da esposa, com quem tinha brigado. A mãe, que não sabia do paradeiro, sequer imaginou em procurá-lo justamente de onde tinha saído tão raivoso. A despeito dos problemas que causou, afinal, ninguém sumiu ou se machucou seriamente. Mas alguns sinais ficaram e as mágoas, já se sabe, acumulam-se em camadas de difícil remoção.
Mas essa história, real, é uma exceção. Na cidade de São Paulo, estima-se que 30 pessoas ou mais desapareçam diariamente, por iniciativa própria ou não. São pessoas que nunca mais serão vistas pelos parentes. Que sumirão num rastro indefinível e que mais parecem suicídios em vida. Daquele tipo de suicida que não deixa bilhetes, que não justifica a saída repentina dos palcos. Simplesmente vai. Sem possibilidade de volta.
A história que relatei tem elementos que, racionalmente, justificam (na minha opinião) o desaparecimento: total ausência de afeto, um lar desfeito, pouco dinheiro e muito gasto, falta de perspectiva, alcoolismo, ambiente de drogas. É um perfeito retrato de milhares de outros brasileiros que vivem em situação similar. Também eu, se estivesse nessa posição, pensaria, em algum momento, em sumir.
Sabe aquelas piadas de cúmulos? Pois dizem que o cúmulo do absurdo é morar sozinho e fugir de casa. O que a piada não diz é que não se pode fugir de si mesmo, viva-se só ou com cinco ou oito pessoas. Portanto, não sei dizer o que leva as pessoas a ir para a esquina sob o pretexto de comprar cigarros (pode ser pão, caixa de fósforos, pó de café, qualquer coisa, mas eu fico com o cigarro mesmo porque estou por aqui com a campanha do antitabagismo!) e sumir, afinar junto com a linha do horizonte até que não reste nem a silhueta.
O problema dessas desaparições que mais parecem abduções é tão grave (por envolver, em muitos casos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiências mentais) que existe uma lei - 11.259/06 - para regulamentar isso: todas as delegacias brasileiras são obrigadas, ao registrar a ocorrência de desaparecimento de uma criança ou adolescente, a iniciar, de imediato, as buscas e acionar, simultaneamente, aeroportos, portos e terminais rodoviários. Claro que isso é teoria. Na prática, a não ser que os parentes se empenhem, nada disso acontece.
Para fins práticos, no entanto, qualquer pessoa que se veja envolvida com o desaparecimento de familiares, conhecidos ou amigos, deve contatar o serviço de Disque-Denúncia ou o 190 (Polícia Militar). Existem, inclusive, alguns sites especialmente dedicados a agregar informações sobre pessoas desaparecidas. É o caso da própria entidade Mães da Sé (ou ABCD), do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas (CNPD), da ONG Desapareceu, do site Pessoas Desaparecidas e do serviço da Prefeitura de São Paulo.
No entanto, se os casos de desaparecimento de crianças, adolescentes e pessoas com problemas mentais é um caso de polícia, volto ao princípio do post: o que dizer de adultos que o fazem voluntariamente, de caso pensado? De pessoas que resolvem 'esquecer' a vida atual e começar do zero? Que tornam-se, de repente, clandestinas? Rostos desconhecidos que, repentinamente, aparecem em outro ponto do País sem que lhes saibamos a origem, o nome, o estado civil? Essas pessoas, para mim, perderam a identidade de si mesmas e, mais do que fugir dos problemas, fogem de si mesmas. E forjam, sem o conseguir jamais, uma outra vida, suspensa entre a vida anterior e a nova vida que nunca se concretizará. Ficam, para sempre, em esquinas do mundo, a fumar cigarros sem filtro, acrescentados do amargor da vida pregressa. Sem amor. Sem compaixão. Sem saída.
4 Comentários:
Um texto para reflectir...e muito!
Abraço.
Pinguim, quando dei por mim, estava exatamente a refletir sobre essas desaparições porque, de certa forma, sou migrante no meu próprio país e hoje tenho a consciência que tentei fugir de território como se, com isso, pudesse fugir de mim mesmo. Um amigo me disse outro dia que quer ir embora do Brasil para mudar de vida. Eu respondi que a vida dele vai com ele e ele ficou sem reposta. Portanto, não há saída na fuga, e sim no encontro consigo mesmo. Abraço!
tantas vezes não pode estar esse encontro consigo mm em outro lugar percebo q para mudar não basta o local, mas por vezes, sem essa distancia fisica, visual, referencias, etc, o resto é impossivel. não é uma certeza.nem tese. só p reflectir. o tema da " fuga" sp m atraiu. e não sou contra quem quer se deixar a si mm, tem lá seus motivos. se eu amar alguém eu amo até ao fim, esteja onde estiver, assuma identidade q for. mudar a gente muda. perder a memoria é caso clínico. nao vamos confundir.
Anônimo, eu entendo algumas fugas, de verdade. Mas não estou a confundir a perda de memória clínica não. Se mencionei isso, é porque a desaparição dos que não a tem, a memória, é ainda mais grave dos que o fazem conscientemente. Abraço!
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