A capacidade de ter schadenfreude versus compor com a gestalt
Schadenfreude, em alemão, é o nome que se dá à capacidade de se ter 'felicidade com a desgraça alheia'. É o mesmo que dizer que você se sente feliz ou alegre com o sofrimento ou a infelicidade alheia. Há, inclusive, um ditado alemão que diz: "Schadenfreude ist die schönste Freude, denn sie kommt von Herzen" - Schadenfreude é a alegria mais bela, já que ela vem do coração. Por outro lado, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer afirmou: "Neid zu fühlen ist menschlich, Schandenfreude zu genießen teuflisch" - Sentir inveja é humano, gozar da Schadenfreude é diabólico.
Em oposição a esse conceito 'do mal', os próprios alemães criaram uma outra teoria, que se aplica muito bem ao universo da arte e da psicologia. É a 'Gestalt' ou psicologia da forma. 'Gestalt' significa o que é colocado diante dos olhos, exposto aos olhares. Teoria com ampla aplicação prática, significa um processo de dar forma ou configuração. No sentido mais estrito, representa a integração de partes em oposição à soma do todo. Ou que o todo é maior do que a soma de suas partes. De forma que, ao se definir um processo como uma 'gestalt', é o mesmo que afirmar que tal processo não pode ser explicado pelo mero caos, a uma simples combinação de causas desconexas, e sim que a essência de tal processo é a razão de sua essência.
É meio complicado, sim. E não dá para elaborar a teoria inteira em post limitado. Mas, numa aplicação prática, a 'Gestalt' pode ser usada na pintura (na configuração da proporção áurea - tamanho das falanges, favos de uma colmeia, repetição de padrões das conchas do mar etc.), na publicidade (uso de símbolos que possuem alto poder de atração - pregnância) e na arquitetura (junção de formas que são agradáveis aos olhos humanos). Entre outros, fizeram uso do conceito o pintor Giotto (baseado na proporção áurea), Salvador Dalí e Marcel Duchamp (ilusão de ótica ou segregação figura-fundo, pela qual não se pode enxergar um objeto sem separá-lo do seu fundo).
Pois bem. O que tem a ver a felicidade com a desgraça alheia (Schadenfreude) com o todo que é maior do que a soma de suas partes (Gestalt)? Tem a ver com humanidade, com humildade, com uma percepção de que o mundo, como um todo, é superior às partes (sejam compostas de raças, credos, culturas, países mais ou menos ricos) e que a desgraça alheia significa, em grande medida, a própria ruína, com o quê, então, não tem fundamento comemorar com regojizo a desgraça alheia.
Porque, de certa forma, a decadência (ou desgraça, ruína, queda) do alheio (vizinho, parente, outra cidade, outro país) significa, desde já, que uma das partes que compõem o todo não é indivisível desse todo e, sendo assim, qualquer parte afetada provocará consequências, em geral, irreversíveis na composição do todo e o desequilibrará irremediavelmente.
Para mim, ambos os conceitos - Schadenfreude e Gestalt - aplicam-se perfeitamente ao mundo contemporâneo. Vivemos em sociedades extremamente competitivas que orgulham-se de feitos e desprezam os losers (fracassados). Rimos quando somos bem-sucedidos e também quando os outros não o são. Pisa-se constantemente nas cabeças alheias para galgar mais rapidamente os degraus de uma pretensa ascensão que, no fundo, não se traduz em felicidade. Ou seja, rir-se da desgraça alheia não traz a felicidade almejada. Apenas confina uma das partes do todo em ridículas prisões para, no fim, entender que a desgraça alheia compõe com a própria decadência.
A ideia toda de confrontar Schadenfreude e Gestalt me surgiu quando li no jornal uma entrevista com o filósofo e escritor suíço Alain de Botton que, de maneira nada polida, e sim troglodita, escreveu no blog do jornalista Caleb Crain, do 'The New York Times': "Odiarei você até minha morte. Observarei você com interesse e schadenfreude", disse De Botton, sobre uma crítica pouco elogiosa aos seus escritos.
Quando li isso, logo pensei que os filósofos, escritores e jornalistas podem, sim, ser bastante venenosos. E o são, efetivamente. E me surpreende (um pouco, apenas) que um filósofo seja capaz de emitir opinião grosseira assim, levianamente. Não estou a defender a classe dos jornalistas, a qual pertenço, porque sei do que somos capazes, munidos de palavras.
Ao contrário, me espantou que De Botton, cujo livro "Os Prazeres e Desprazeres do Trabalho" - editora Rocco - 328 páginas - que sai agora no Brasil, seja capaz de buscar o significado dos ofícios a ponto de seguir a trajetória de um atum do oceano Índico até a mesa de uma família em Bristol, na Inglaterra, e, simultaneamente, de se rir com a eventual desgraça do jornalista do outro lado do Atlântico.
O problema é que o livro aborda justamente a felicidade (ou não) no trabalho. A felicidade que, eventualmente, vem a ser mesma que De Botton pretende sentir quando Caleb Crain cair em desgraça. Faltou a De Botton, portanto, avaliar que tanto ele quanto o jornalista do 'The New York Times' formam a gestalt e, assim, dão forma a um mundo assombrosamente destituído de gestalt e, de forma aterradora, prenhe de schadenfreude. A mim me apavora essa condição humana. De verdade.
2 Comentários:
Uiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, tanta areia para a minha camioneta...
Eu prefiro um mais simples e por vezes bem eficaz: "Muito triste estava por não ter sapatos, mas alegrei-me ao encontrar um homem sem pés".
Abraço amigo.
Pinguim, confesso que me empolgo com algumas coisas e 'viajo'. De qualquer forma, são temas que atraem de uma forma que não consigo dizer não e daí, quando vejo, já fiz uma dissertação. Abração!
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