Muito além do jardim
Na concepção cristã e em outras religiões, o Éden ou paraíso é o jardim almejado pelos humanos na pós-morte. Quer dizer, por aqueles que creem na passagem que, eventualmente, faremos do terreno para o divino. Desconfio que, além-morte, nada mais há do que apenas a terra a me cobrir. E é só.
No entanto, respeito a crença alheia e, por um instante, chego a experimentar até mesmo a sensação de crer no quem vem depois, no eventual paraíso, na paisagem de jardins exuberantes a me esperarem, com flores, pássaros e cheiros a alegrarem a minha eternidade. Ocorre que esses pensamentos travam-se no momento em que os tenho por acreditá-los demais fantasiosos. Ao contrário, acho que, em plágio a Sartre, se o inferno são os outros, também paraíso e purgatório são os demais. A trindade divina que sustenta algumas religiões - céu, purgatório e inferno - são, pois, alegorias que experimentamos aqui mesmo, nesta terra que nos há de encobrir tanto quanto já o fez a milhões antes de nós.
Na semana passada, dois noruegueses foram condenados à morte por um tribunal militar da República Democrática do Congo. Tjostolv Moland, de 28 anos, e Joshua French, de 27 anos, foram acusados pela morte de um motorista congolês e também de espionagem, roubo a mão armada e crime organizado. O julgamento foi feito em francês, língua desconhecida para os dois acusados, e sem intérprete.
E essa informação me suscitou o pensamento principal desse post: o mote central de algumas religiões garante o acesso ao paraíso, com eventuais paradas (ou entroncamentos) e, no extremo, uma descida aos infernos - e olhe que interessante: ao céu se ascende e ao inferno se baixa, em maniqueísta definição de alto e baixo, superior e inferior, acima e abaixo, teto e subsolo.
Desprezadas eventuais escalas no purgatório, me questiono o que há além dos jardins. Na fronteira que divide paraíso e inferno deve haver uma região limítrofe, uma Faixa de Gaza e, nas definições sempre assertivas de Stephen King, essas regiões devem se parecer a estranhos territórios nos quais vagam tipos erráticos, sempre prontos para nos solapar em nossas eventuais aspirações - tal qual escapar do eventual inferno. Por isso, chamo essa região de 'muito além do jardim'. Não é o inferno (ainda que eu me resguarde na afirmação de que o inferno são os outros), mas também não é mais o paraíso.
Nessa região intermediária, figuram exatamente 58 países que, dentro dos respectivos limites geográficos, mantêm seus próprios (muito além dos) jardins. Esses países, governados sob regimes democráticos ou ditatoriais, executaram, no ano passado, 2.390 pessoas e estabeleceram a pena capital para mais 8.864 condenados, segundo dados da Anistia Internacional. Outros 139 países rejeitam a pena de morte.
A seguir, o ranking dos países que executaram pessoas no ano passado por meio de apedrejamento, forca, cadeira elétrica, injeção letal, decapitação e câmara de gás:
- China - 1.718 pessoas
- Irã - 346 pessoas
- Arábia Saudita - 102 pessoas
- EUA - 37 pessoas
- Paquistão - 36 pessoas
- Afeganistão - 17 pessoas
- Coreia do Norte - 15 pessoas
- Japão - 15 pessoas
- Bielorússia - 4 pessoas
- Sudão - 1 pessoa
Esses países e mais 33 outros que não executaram pessoas no ano passado (mas o fizeram em anos anteriores) formam um imenso território de zonas de sombra. São as tais regiões fronteiriças citadas por King que muitos de nós, em são consciência, jamais colocaremos os pés. Acabemos, pois, com esse jardim melífluo, esse não-jardim.
- 1976: Portugal
- 1978: Dinamarca
- 1979: Brasil, Ilhas Fiji, Luxemburgo, Nicarágua, Noruega e Peru
- 1981: Cabo Verde e França
- 1982: Holanda
- 1983: Chipre e El Salvador
- 1984: Argentina
- 1985: Austrália
- 1987: Haiti e Liechtenstein
- 1989: Camboja, Eslovênia, Nova Zelândia e Romênia
- 1990: Andorra, Croácia, Eslovâquia, Hungria, Irlanda, Moçambique, Namíbia, República Tcheca e São Tomé e Príncipe
- 1992: Angola, Paraguai e Suíça
- 1993: Guiné-Bissau, Hong Kong e Seychelles
- 1994: Itália
- 1995: Espanha, Ilhas Maurício, Moldávia e Yibuti
- 1996: Bélgica
- 1997: África do Sul, Bolívia, Geórgia, Nepal e Polônia
- 1998: Azerbaijão, Bulgária, Canadá, Estônia, Lituânia e Reino Unido
- 1999: Timor, Turcomenistão e Ucrânia
- 2000: Albânia, Costa do Marfim e Malta
- 2001: Bósnia e Herzegovina e Chile
- 2002: Sérvia e Montenegro
- 2003: Armênia
- 2004: Butão, Grécia, Samoa, Senegal e Turquia
- 2005: Libéria e México
- 2006: Filipinas
- 2007: Ilhas Cook, Quirguistão, Ruanda e Kazaquistão
- 2008: Uzbequistão
- 2009: Burundi e Togo
4 Comentários:
Nós aqui, em Portugal, estamos sempre a deparar com estatísticas negativas e que nos entristecem.
Pois aqui e hoje tenho o maior orgulho em ser português, aliás, já na abolição da escravatura, Portugal esteve no primeiro pelotão, e detacado...
Abraço.
aqui em portugal, digo eu, cada vez menos tenho orgulho, que nunca tive. execuções, abolida a pena de morte, sob pena de morto-vivo... cresce assustadoramente entre nós. e inquiram grande parte dos portugueses a ver... "acho que sim, devia!"... e os argumentos são deprimentes, os dos "não-condenados"... estatísticas dessas dizem pouco. e qq país é hj mt diferente do que há 5, 10, 20 anos atrás.enfim. acredito em vida em vida, infernos e paraísos, não os outros, mas nós mesmos, também "entre" os demais.
Pinguim, no Brasil tivemos pena de morte primeiro para os escravos fugidios, que eram executados sumariamente, e depois por rebeldes, como Tiradentes, que foi executado pelos portugueses que administravam, à época, as províncias. Qualquer ato de insubordinação podia acabar em pena de morte. Não há estudos acurados a respeito disso, mas a pena capital foi abolida no papel e não na prática. Há fortes indícios de que, durante o regime militar que vigorou no Brasil até meados dos anos 70, presos políticos foram sumariamente executados em prisões e mesmo nas guerrilhas nos interiores do País. Tenho para mim que a pena de morte nunca cessa, de fato, porque sempre os haverá aqueles que acreditam em justiça pelas próprias mãos. Abraço!
UFMing, como eu respondi ao Pinguim, as execuções no Brasil continuam a acontecer de uma forma ou de outra. Há execuções oficiosas e criminosas e ambas têm em comum o fato de consolidaram a pena de morte. Portanto, no Brasil, como em Portugal e outros países, o inferno somos nós mesmos, de forma direta ou não, que interrompemos a vida alheia, alheios que estamos a eventuais paraísos terrestres que possam coexistir com os infernos terrenos. Beijo e boa semana!
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