Meu rugido dominical
Estou no início da leitura de um livro em que o protagonista, um matemático excepcional, adora correr e faz das corridas um hábito assaz frequente, diário. Com as corridas, o personagem repõe a energia, em aparente paradoxo, e recompõe os pensamentos.
Nas corridas, pelas ruas de várias cidades, o personagem contorna obstáculos e, ao final, exaurido, sempre acaba por concluir alguma equação. Não matemática, mas sim da vida. Eu sempre fui avesso às corridas, fossem ou não de longa distância. Aos primeiros 100 metros, arfava, sentia dores que se alastravam pelo corpo todo e quase sempre me sentia desfalecer, com pequenos momentos de escuridão, embora o sol brilhasse sobre a minha cabeça.
Não sei se isso é uma condição hereditária ou genética mas nunca me dei bem nas corridas. Me recordo de ter corrido muitas vezes, em pequenas ou longas distâncias, para atender exigências comezinhas do cotidiano: pegar carona, correr de um animal bravo no pasto, ser veloz o suficiente para pegar a galinha que seria servida no domingo ou mesmo nas aulas matutinas de educação física, nas quais era obrigado a correr.
Me recordo também de que havia um colega que sempre obtinha dispensa dos esportes (todos) das aulas. Colocava-se numa situação de frágil e, amparado por mandatos maternos e outros, apenas nos assistia, aos demais, em esforços de adolescentes para, pelo menos, não ser o último da pista.
Enquanto leio o livro, li também um artigo bastante interessante sobre o tratamento que a humanidade dispensa ao próprio corpo humano, da Idade Média até os dias de hoje, e de como a obsessão com a forma perfeita - adaptada à devida época - é recorrente. O sociólogo francês Georges Vigarello, autor de livros como "História do Estupro" e "História da Beleza", em entrevista original concedida à revista francesa "Sciences Humaines", discorre sobre a evolução do homem no que se refere ao trato com as crianças e mostra que a busca pela forma perfeita do corpo é um tema antigo.
Tomei a liberdade de fazer um texto adaptável a este espaço, dentro do que me ficou registrado. Em rompante de auto-indulgência, concederei a mim mesmo as devidas graças por tratar o meu próprio corpo conforme me apraz, ainda que, pelo caminho, fiquem restos de fôlegos perdidos para sempre. Já ouvi algumas vezes que o corpo é um templo que, por sagrado, não deve ser profanado. Discordo: por humano, o corpo não é sacro e tampouco profano. É corpo apenas. O que me remete a outro livro, lido há alguns anos: "Este é o Meu Corpo", da angolana Filipa Melo, cujo registro orbita a partir do corpo desfigurado de uma mulher. O uso que se faz da carcaça a cada um se lhe apetece.
No entanto, sempre houve a iniciativa de 'endireitar o corpo', torná-lo reto, dentro de uma retidão que a mim se me assemelha a uma espécie de retidão moral que passa pela correção física. À postura corporal, me parece, corresponderia à postura moral, conforme demonstro, baseado em Vigarello, na ordem cronológica abaixo:
- Idade Média: recomendava-se ao jovem que não apoiasse os cotovelos na mesa ou lhe diziam para não enfiar a cabeça nos ombros, para não causar impressão de hipócrita. E tampouco balançar a cabeça de um lado para o outro, em expressão de indecisão.
- Séculos XVI e XVII: o educador ou mestre assume a postura da criança e é ele que tem o poder de endireitar o corpo do adolescente. Exemplo: uma serva que apoia as mãos na barriga da ama para empurrá-la para trás e puxar seus ombros, em tentativa de endireitar o que começa a vergar.
- Século XVII: ao que parece, com as mãos dos servos a ficarem leves para corrigir os 'defeitos', desenvolvem-se roupas, verdadeiras armaduras que tentarão manter a postura rígida sem que as crianças arqueiem. As mãos são substituídas pelos corpetes e malhas. São usados tanto para má-formação natural (pau que nasce torto ...) quanto de forma preventiva pelas crianças da aristocracia e da alta burguesia. As vestes são desconfortáveis: o corpo da criança fica sustentado ao nível do peito por um peitoral e na altura do pescoço, por um colarinho.
- Século XVIII: as práticas corporais educativas começam a ser criticadas. Primeiro, pelo sofrimento imposto à criança que, dominada pela rigidez das vestes, perde a liberdade de movimento e flexão. Segundo, porque passa a se acreditar que a criança tem força suficiente nos músculos para a boa sustentação do corpo em sua forma reta. Nesse século, as fibras do corpo - redes nervosas e musculares, que possibilitam a atividade tensional do corpo - passam a receber atenção. E, importante: a partir desse conhecimento, as crianças começam a ser submetidas a exercícios físicos de forma a exauri-las e obter os resultados desejados.
- Século XIX: o músculo e o pulmão ganham papéis de protagonistas. É esse século que inventa a ginástica na forma como a conhecemos atualmente. O princípio é do exercício mecânico, com séries numeradas. Os gestos passam a ser pensados para espaços metrificados. Com a expansão advinda da Revolução Industrial, na fábrica ou na oficina, a função dos gestos volta-se para a rentabilidade do trabalho do operário. Perceba que a criança ficou pelo meio do caminho. Ou melhor, cresceu e transformou-se no trabalhador industrial. O mesmo princípio vale para a rentabilidade de gestos nas forças militares. E é aqui que nasce a ginástica escolar: todas as crianças (eis que elas voltam) fazem os mesmos gestos no mesmo ritmo e simultaneamente, com máquinas (manivelas, polias, roldanas, escadas). O mobiliário se adapta: distância entre o peito e a borda da mesa, entre a altura do assento e da carteira escolar.
- 1880: ao mesmo tempo que o corpo da criança é liberado de corpetes e malhas, pela autonomia da ginástica, mantém-se rígido pelos exercícios forçados e precisos. Mas, de novo as críticas surgem e julgam que esses métodos são autoritários ou expoentes de uma cultura extremamente militar. O esporte regulamentar - corrida, ciclismo, canoagem - surge nessa época na Inglaterra e é tido como uma verdadeira libertação (lembre-se do início deste post, no qual o personagem do livro se solta da rigidez matemática ao correr).
- 1920: nasce, com Jean Piaget, a inteligência sensorial e motora. A partir de meados do século XX, a psicologia influenciará as práticas corporais, inclusive de postura.
- 1960: o corpo não é mais concebido como uma mecânica, e sim como portador de mensagens, de informações e de sensações vividas. O sujeito deve escutar-se a si mesmo. Não existe mais uma norma coletiva e genérica, mas sim a norma que cada um define para si mesmo. O corpo torna-se o suporte da identidade e adquire a consciência de que existem várias maneiras de ser reto, de se portar e que às retidões correspondem normas individuais que podem ser tão elegantes quanto outras.
- Hoje: as expressões corporais são cada vez mais individualizadas, como o piercing e a tatuagem. Surgem princípios como o da talassoterapia (uso da água do mar, algas, esponjas, sais minerais e outros elementos salgados) na busca do reencontro com o próprio corpo. Práticas como maratonas, esportes radicais e até mesmo as raves, com os consumos exacerbados e transes embalados pela música hipnótica, constituem-se em uma maneira de explorar o corpo além de seus limites: a ausência de limitações toma o lugar das antigas transcendências nas quais se acreditavam.
Devo afirmar que, cronologicamente, essas passagens refletem muito intensamente a minha própria relação com o meu corpo. Exceto pela prática da talassoterapia, me identifico o bastante com as demais práticas para poder afirmar que passei da transcendência (de um corpo divino e, portanto, sagrado) para a ausência de limites (profano). Devo admitir, também, a bem da verdade, que meu corpo anda ressentido comigo. Ou seja, não consegui, ainda, reencontrar o meu próprio corpo. "Como se esses reencontros nos permitissem ser realmente o que somos", retruca o sociólogo. Obrigado. Isso é algo confortador, embora soe mais como um beliscão. Acho melhor eu tomar meu rumo. Quer dizer, minha retidão e postura.
(A entrevista com Georges Vigarello foi reproduzida no jornal Folha de São Paulo deste domingo, no caderno Mais)
2 Comentários:
Olá
que acha o Red das semelhanças fisionómicas entre humanos? não me refiro aqueles com graus de parentesco consanguíneo, mas sim a "tipos" de rosto, corpo, etc, com semelhanças evidentes, do género que nos fazem quase cumprimentar um amigo que, afinal, mais não é que um estranho. sabe do que estou a falar? desafio aceite para um post?!
Umbilical, as semelhanças entre humanos partem, segundo meu princípio, de uma combinação do DNA, da mesma forma que ocorrem com as combinações numéricas. Assim, não é difícil que, entre 6 bilhões de pessoas, tenhamos semelhanças. Mais do que isso: talvez busquemos as semelhanças porque nos fazem bem ou por necessitar de um reflexo familiar no rosto do estranho. Pode sim gerar um post. Seria bastante interessante fazer considerações sobre isso, sobretudo quando os robôs feitos pelos japoneses aproximam-se, fisicamente, cada vez mais dos nossos antecedentes primatas, pelo menos na face.
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