As várias faces de um crime
Instado por um(a) leitor(a) que, por meios virtuais, se conectou, senão de forma UMBILICAL, ao menos de maneira presencial - estabelecido que presença pode ser verbal também - e que, ao FiM e ao cabo, houve um deus enigmático destas plagas que declarou: que se façam as conexões, e elas foram feitas, fui devidamente admoestado a escrever sobre as semelhanças que ocorrem na natureza entre as mais diversas faces humanas.
O que fazemos quando confrontados com uma familiaridade que, ao mesmo tempo, não o é e, ainda assim, nos causa espécie, daquele tipo que nos detêm o olhar, um instante a mais do que seria razoável e que, por vezes, nos leva mesmo a contato maior, verbal ou até mesmo físico?
Que embora umbilical se chame, desdenha de abraços e aproximações físicas mas não se absteve de sentir, se não na própria pele, nas entrelinhas o que se passa na epiderme deste aqui que vos escreve.
Na hora, a ideia não me pareceu geradora de grandes novidades nessa área, de faces várias e que podem me levar a análises e digressões a alturas que me deixariam por demais distante do foco.
(As múltiplas faces que se convergem numa só)
Mas, de repente, o momento se fez, gratuito, e me vi a pensar na sugestão. Mais: me vi a fazê-la, a análise, vi o work in progress, o fato em si já a se revelar, o post pronto para ser extraditado nessas redes neurais que nos interligam, com umbigos ou não.
Hoje, às 18 horas, horário brasileiro em que a multidão se conduz, mui bovinamente, para fora dos escritórios e para dentro de outras prisões ou cantos libertários, me postei (sem a intenção inicial de escrever este post) na Avenida Paulista, centro nervoso literal, por cujas artérias ... foge, povo .../passa poste .../passa boi/passa boiada, à espera de uma pessoa para um café-relâmpago.
(Meu ponto de observação na Avenida Paulista)
A espera foi maior do que o período de convivência entre o café e o último cigarro. Nesse intervalo, de pelo menos 45 minutos, tive oportunidade de estudar, calculo, mais de uma centena de faces. As várias faces de um mesmo crime. Porque me pareceu, de repente, criminoso estudar em registro antropológico (e, de certa maneira, antropofágico) todas aquelas faces.
As faces se sucederam, continuamente. E as tive de todos os jeitos: as que mereciam um olhar incauto. As que me prendiam o olhar por mais tempo do que o usual. As que faziam com que o meu olhar as buscassem já sem faces, apenas a memória rápida da face que ali estivera antes e da qual sobrara apenas a nuca.
As que me fixaram o olhar no olhar. Me interrogaram e, por segundos, me tentaram deslindar assim como eu tentava fazer o mesmo. Faces que compreenderam, em instantâneo que morreu no passo seguinte. Faces que não eram faces. Eram mais fossos, de tão profundas. Faces secas. Fechadas feito folhas que se guardam para a primavera. Outras, outonais, eram até mesmo faceiras.
Novas, adolescentes, velhas, carcomidas, limpas, escuras. As faces de pedestres se alternavam sem repetição, em projeção fantástica que não se repetia sequer uma vez. Exagero: houve faces que foram e se voltaram, talvez sob a pressão do meu olhar. Ou talvez porque o quiseram. Ou ainda porque lhes apeteceu. Quem sabe.
Houve uma face pouco mais do que adolescente que se manteve por ali, por um bom tempo. Foi, passou por mim, voltou, me encarou. Encarei de volta. Foi de novo. Dirigiu-se até a lixeira da calçada. Para a minha surpresa, abriu o lixo e procurou algo. O que seria? Um código? Um sinal? Drogas? Não sei. Maior do que a minha surpresa era o receio dessa face. Que, ao se sentir observada, abandonou o projeto de escavar a lixeira e finalmente se foi. Não sem antes me mirar a própria face.
As houve, faces várias, reunidas em convescote moderninho: Coca-Cola, chips, cigarros e bate-papos anônimos. Houve faces solitárias que passaram com passos pesarosos. Outras, livres dos grilhões do dia, renovaram-se ao ser engolidas pela multidão.
Houve faces de casais que se misturaram numa só. A face do dono do carrinho de pipoca, iluminada com a luz do lampião a gás, que se refletia em fantasmagórica alegoria no meio do calçada. Faces pululantes. Até mesmo de cachorros houve faces.
Nas pistas da avenida passaram muitas faces. Todas incógnitas, protegidas pelo escuro das janelas de vidro. Algumas se viam, de relance. Outras, faces de cenho carregado, tomavam os ônibus em fila indiana interminável.
Olhei para cima e imaginei mais faces nos prédios. E cada janela me pareceu uma face a me olhar de volta. Presumi que acima do nível da avenida muitas faces estavam prontas para aterrisar ao rês do chão. E se juntar às outras faces.
Se vi faces familiares? Sim, as vi. Muitas. Que me deram ímpetos de ir ter com elas. Amigáveis, convidativas mas não a ponto de eu interceptá-las. Mas ainda assim afáveis. Tive vontade de me aprofundar em várias faces, lhes dar contornos cheios de conteúdo para que preenchessem o que para mim, na face, ainda era enigma.
Faces conhecidas? Por incrível que pareça, vi uma. Que me olhou de soslaio, entre o reconhecimento e a dúvida. Baixei os olhos para não confirmar. Quando me voltei, também a face se voltou e minha tentativa de anonimato caiu por terra. Ainda assim, nossas faces não se viram cara-a-cara.
E, sim, creio que é possível ver na face estranha o rosto amado, desejado. Nem que for por um efeito trompe-l'oeil, é possível encontrar-se face a face com a face que conhecemos. Que de alguma forma umbilical, é uma face amiga, irmanada por algum motivo que não nos é dado conhecer.
Por fim, para encerrar a galeria de faces, chegou-se a mim a face que eu aguardava para o café. Unimo-nos, então, e às nossas faces e releguei as demais faces aos seus destinos e desatinos, numa confusão de faces a se intercalarem uma após a outra, empilhadas todas numa só. Porque o crime tem várias faces mas é um só. O crime de ter todas as faces num relance e de absolutamente não tê-las sob forma alguma.
Para encerrar esse experimento e não me ver simplesmente face a uma dura realidade, a de fazer caber numa só todas as faces, finalizei tudo com livros, cujas faces são (quase) sempre apaziguadoras e que têm o mérito de não me olhar de volta com faces interrogativas. As páginas dos livros podem até mesmo conter faces. Mas basta fechá-lo sobre si mesmo para que as eventuais faces emudeçam e esmaeçam.
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