Disseca-me ou te devoro: eis o enigma da traça
Dá para fazer uma livrofagia? Quer dizer, comer o livro, devorá-lo às entranhas feito traça? Em conversa com um amigo, eu disse que me sentia mais ou menos assim, como uma traça que devora o papel, as letras impressas, o gosto, o cheiro, a tinta, tudo o que contém um livro. Sou um devorador de livros no sentido quase estrito do termo.
Sou um livro ambulante: construo histórias o tempo todo, busco palavras, as encaixo feito engrenagens. Por vezes, sinto que preciso colocar um pouco de óleo porque algumas dessas palavras se apresentam enferrujadas. Não pela falta de uso. Não. Mais pelo uso constante, de gasto de vida útil. Daí que leio que a capacidade de reter a atenção sobre determinado foco é um recurso finito, assim como o é a vida e a água, por exemplo. Mas vida é recurso ou curso?
São tantas as questões, não? Volto o foco da minha atenção ao livro: come-se o livro? Dá para penetrar a alma do livro, ir além da página e chegar ao momento mesmo da criação do escritor? Me sentirei mais próximo de Shakespeare do que você por ter captado alguma coisa que você não o fez?
Sei que tempos em tempos os livros são alvo de muita coisa: fogueiras, códices, filas para se conseguir um exemplar, assassinatos para se obter o exemplar raro babilônico e até mesmo uma desculpa para chegar perto do Paulo Coelho. Sim, os livros têm sido usados sob os mais inusitados artifícios.
Agora, um artista norte-americano, Brian Dettmer, faz o que chama "autópsia dos livros", uma "dissecação" (veja as fotos que estampam este post). Toma de empréstimo a terminologia da medicina legal e aplica a técnica para transformar velhos volumes de livros, dicionários e enciclopédias (não são todos livros, afinal?) em obras de arte em três dimensões, que se revelam, na minha opinião, em alguns casos, extremamente comestíveis.
Ao modificar o livro em formato, Dettmer diz que isso permite interpretações alternativas ao interior das obras. Para o artista, os livros velhos, como discos, mapas e fitas (K7 ou de vídeo) caíram em uma esfera onde estão vários outros tipos de arte, com a diminuição do papel tradicional (papel como função e não papel matéria-prima) e assumiram uma conotação mais como símbolos de ideias do que como mensageiros de conteúdo.
Não sei se concordo com a justificativa de Dettmer. Porém, o artista afirma não inserir ou excluir conteúdo dos livros, o que já é um sinal de boa-vontade. Li, por falar nisso, um livro que se chama "Os 351 Livros de Irma Arcuri", do norte-americano David Bajo - Nova Fronteira - 350 páginas, no qual Irma, uma das protagonistas, tributa uma vida aos livros. Ela é uma artesã de livros, que desmonta volumes velhos e os remonta de forma manual, folha a folha, com reconstituições preciosas que tornam os livros maleáveis a ponto de "carregar um país, uma civilização inteira na dobra do seu pulso".
Livros, para mim, são alimentos em vários e amplos significados. Deveria haver, inclusive, um tipo de livro-hóstia que me consagrasse não o corpo d'Ele, e sim o conteúdo milimetricamente gravado em mim como se eu um logotipista fosse. Tomaria-se, ou beberia-se, conforme a liturgia, o livro, ao invés do sangue, para ter no corpo o líquido que viceja e pulsa nas veias.
Com a dissecação de livros, Dettmer evolui, na minha opinião, para um mundo em que um livro muito se assemelha a um bom bolo de confeiteiro. Cria apetite. Eu já a tenho, a fome de livro. Que, por vezes, a imagino como uma praga acintosa a me consumir. Depois, mais apaziguado, resolvo que sou eu mesmo a velha traça que carcome por anos a fio o pergaminho fino que, se de papiro não o é mais, tanto se me faz, dado que me alimenta assim como as cheias ainda renovam o Nilo.
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