Meu rugido dominical
Incitado mais pelas gôndolas do supermercado do que pelas tradições brasileiras que pedem que se celebrem as festas juninas, estou em pleno processo de produção da canjica. É, isso mesmo. Eu cozinho com vontade quando me proponho a fazê-lo. Quero fazer dessa canjica a minha particular festa junina para resgatar outras juninas festas que se foram e ficaram apenas na lembrança.
As festas juninas brasileiras originaram-se das tradições equivalentes de Portugal, de cunho religioso, e são datas comemorativas de santos populares lá, além-mar, e aqui, no Brasil: Santo Antônio, São João e São Pedro são os protagonistas dessas festas.
Eu me recordo que todo mês de junho, quando cursava o ginásio (ai que antigo!) - da 5ª. à 8ª. série segundo o ensino médio de então - passávamos, os estudantes, cerca de 15 dias nos preparos para a festa junina escolar: arrecadação dos recursos (prendas, que incluíam até, por vezes, reses), construção do cenário (pau de sebo, capelinha, cadeia, arraial, tudo feito com bambu e coberto de sapé) e figurino (roupas ao estilo caipira, com chapéus de palha, camisas de algodão e botinas para os homens e vestidos de chita, marias-chiquinhas e sapatinhos baixos para as mulheres).
E, finalmente, chegava o dia da festa: tudo iluminado, todos paramentados e dançava-se a quadrilha, principal atração da noite. Era uma festa: a cidade envolvia-se completamente com o evento e alunos e pais participavam.
Depois, em fase posterior, cheguei a participar de festas juninas menos ingênuas, mais movidas a combustíveis como o quentão (mistura de aguardente, açúcar, gengibre e especiarias) e cuja conotação já destoava das singelas festas escolares. Era mais um motivo para beber do que propriamente para se celebrar gratuitamente da forma como se fazia no ambiente juvenil ginasial.
Atualmente, não sei mais o que é das festas juninas, seja no interior ou nas cidades como São Paulo. A única - e pobre - referência que me veio este mês, por exemplo, foi exatamente dos supermercados, que enchem prateleiras com ofertas típicas: canjica, amendoim, paçoca, milho para pipoca, pé-de-moleque e outros ingredientes que estão associados às juninas.
Mas o que importa mesmo é aquele ambiente interiorano. Era algo ingênuo. Simples e de compartilhamento. Comemorava-se uma realização (da escola) e uma sociabilização (pais, professores e alunos) que não existe mais.
Soa a saudosismo e é assim mesmo. Que mal há nisso? É que não vejo mais a ingenuidade e simplicidade daqueles tempos e daí a recorrência à vaga memória que me traz comemorações desse tipo. Me lembro de percorrer estradas vicinais de terra em busca de doações voluntárias, de me divertir com os colegas que estavam juntos, de trabalhar artesanalmente na construção dos cercados de bambu, de me vestir de 'caipira', com toda a mise-en-scène do ato.
No Brasil, a festa junina (antes era joanina, de São João), veio de Portugal e de outros países europeus, por meio dos imigrantes italianos, alemães e outros, chegados já em meados do século XIX. Mas, como tudo no País, a festa tem elementos miscigenados que se plasmaram nas culturas africana e indígena.
No Nordeste, a principal festa é a de São João (a de Campina Grande, na Paraíba, é considerada a maior do mundo, e tem também a de Caruaru, em Pernambuco). E é aqui que eu digo que se acabou a singeleza dessas festas, assim como ocorreu com outros eventos (Carnaval, Parintins, na Amazônia). Hoje, essas celebrações são feitas em escala industrial, com marcas multinacionais a patrociná-las.
Tenho um amigo que diz que a cada vez que se estabelece um perímetro e regras para as manifestações festeiras populares, esgota-se a capacidade criativa de modo que essas festas perdem o tom da originalidade que as caracterizava. Concordo: basta ver o Carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo e o Festival de Parintins, no meio da floresta amazônica, para entender que essas festas são apenas réplicas organizadas da criatividade original que lhes deu forma.
E volto à canjica (acaijic, em tupi-guarani), que começa a levantar fervura na panela de ferro, cujas raízes, por serem procedentes do terreiroir brasileiro, presta-se, de forma efusiva, ao meu pequeno protesto (ainda que gastronômico) contra o desenraizamento cultural brasileiro em geral, em que se converteu o caldeirão (mas não a panela na qual cozinho neste momento) da criação popular.
Daí que faço, de forma metafórica, um ato de antropofagia: comerei a canjica para sanar em mim a fome de um universo em extinção, cozido por demais tempo em tachos modernos que transformaram tudo - festas e pessoas - num pastiche sem sabor e inidentificável. Apenas um caldo insosso.
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