Devagar com o andor porque a dor não é de barro
Embora a teoria bíblica insista na hipótese de que de pó somos feitos e a ele voltaremos, eu replico e nego: não sou de barro e tampouco de ferro porque, se de argila ou de metal fosse, não sofreria com a dor de cabeça que é matemática na minha vida: uma constante. Pior: constante, irracional e infinita, como a própria matemática define o Número de Euler.
Se fosse eu feito de barro, me quebraria de tanto ir à bica como se diz daquele vaso que lá foi e ficou. Se de metal eu fosse, acabaria em ferro-velho ou à boca de um forno de fundição para ser relegado à crescente febre de que tudo deve ser reciclado, esquecido apenas o detalhe que a reciclagem nunca nos alcança. Somos, antes, vencidos pelo cansaço.
Há anos que a dor de cabeça me aflige, em menor ou maior intensidade, de curta ou longa duração. Vem em ondas melífluas. Eu a pressinto, e nada posso contra tão iminente e intrasigente visitante. Vem e vai quando quer. Se quer, porque tem dias que noites vazam e misturam-se, ambas as partes das 24 horas, numa só, comungadas pela dor única. Nesses dias, padeço de vigília forçada, feito um antigo cumpridor de dogmas católicos que passava os dias santos no fervor da vigília de ponta a ponta da noite à madrugada, contrito em silêncio respeitoso e cerimonioso.
Pois que eu me silencio porque o mais leve ruído, a mais branda aragem e o menor assobio me confrangem em dimensões insuportáveis. Me vejo lobo em noite de lua cheia e só não uivo em dolorosa contemplação da prateada luz que lá do planeta vem porque, tenho comigo, os vizinhos poderiam me internar com medo de metamorfoses outras. Porque, embora não acreditemos mais em lobisomens, sacis e mulas sem-cabeça, pois sim que vamos apostar que não existem!
Desse padecimento ingrato, chega-me o silêncio contemplativo da cidade. Sim! Mesmo de onde estou, na beira da Paulista, em meio a um trânsito que não cessa, ainda assim a madrugada apazigua São Paulo. Mas não a mim. Enquanto sofro com a dor, me incomoda que silenciem. E me incomoda, em simultâneo, se não o fazem. Pois que a dor é uma adversária robusta e cerca todas as bordas - a face, a testa, a nuca - e tudo se transforma numa imensa massa amorfa, perene e fraca. Com pensamentos vacilantes e incoerentes que ziguezagueiam.
Quisera eu produzir, criar e evoluir em meio à dor feito passista em passarela de samba. Qual o quê! Emudeço e ao cérebro também. Sou nada. Fico apenas olhos estreitos, a espreitar se as ondas sísmicas se romperão ou arrefecerão. Contabilizo minutos, horas e, com tristeza, a passagem de um dia para o outro sem que haja trégua por parte daquela que me ataca.
Dessa vez, foram mais de 24 horas incessantes, com a dor a aumentar, a empilhar mais dor sobre a dor existente. Foram tantas as camadas que, se fosse eu um levantador de peso, desabaria sobre as toneladas que me pressionaram o lobo frontal. Lobo esse que não combateu e me fez, uma vez mais, ficar com ganas de ganir e uivar.
Da dor de cabeça, classificam-na em duas: tensionais, quando ocorre pressão dos músculos da face, do cérebro e da nuca, que podem resultar de esforço físico ou situações extremas de nervosismo. Essa eu passo que, em pleno feriado no Estado de São Paulo, não sofri nenhum stress e tampouco exerci alguma atividade física que cobrasse ao corpo a correspondente desforra. Ao contrário, o meu maior esforço consistiu em me levantar de um local e sentar em outro. Dois ou três passos. Quando muito, abrir a garrafa de café e me servir. No limite, ir até a geladeira e não comer, pois que a dor de cabeça corta-me apetite, desejo, prazer, vontade e sinto apenas um imenso vazio.
A outra dor é chamada de secundária, sintoma de infecções e tumores. Nos meus mais escuros devaneios, eu, prolixo de humor negro, me atribuo aneurismas e tumores a me comprimirem o cérebro. Pois que sinto a massa encefálica dilatada, presa por garras tantas quanto a de polvos pavorosos a esmagar, comprimir, pressionar. Sinto lampejos e chego perto de entender como se produzem os raios. Classificam, a essa dor, de latejante e pulsátil. Pois que sinto ambos os sintomas. E, perdido entre ambos, tento desabar. Mas a dor é superior ao sono. E nem a escuridão é capaz de conter as faíscas que a tudo iluminam em fortes refrações de luzes as mesmas usadas como instrumentos de tortura que, embora eu não as conheça, sei que assim o são.
No limite, a dor de cabeça muda de nível e, feito um game no qual se ganha o direito de disputar um degrau acima, a dor envilece e se aferroa ainda mais e transforma-se, por fim, em enxaqueca. E daí o mundo vira um pó. Como se fosse uma tempestade de areia em que cada grão é contabilizado como agente agressor. Qualquer fiozinho de luz te afeta. Um balançar de roupas no varal tem o dom de te fustigar como se você fosse um remador de galeras que trabalha na base do açoite.
A dor não cede. Ao contrário, acede. Eleva-se, vencedora que é desde o início do combate que, afinal, não existe. Não é uma batalha na qual se entra para disputarem vencedores e vencidos. Não. Você é sempre o perdedor. Não importa as rezas, as poções, as promessas de uma nova vida, alimentação saudável, adeus ao cigarro e ao café. Nada disso detém a valorosa dor de cabeça. Que marcha impávida, lança em punho, pronta para enfiar agulhas de precisão em cada poro. São tantas as agulhadas quantas são as estrelas no firmamento. Se as contei? Nem as primeiras e muito menos as segundas. Mas me parecem infinitas enquanto duram, ambas, pois que estão sempre lá, sem dar sinais de fraqueza.
Pois que se fosse eu de barro, me quedaria na bica, onde um dia talvez eu lá fique, efetivamente. Por ser lá local de mais frescor, talvez que a amazona me deixe em paz. Que fosse eu de ferro, imantaria as agulhas todas com que se lança a mim e me atiraria em caldeira de aço fervente e a destruiria. Que, pois, não sendo de terra e nem minério, padeço a dor da carne até que se canse, não a própria dor, mas o corpo, combalido. E que deixe de lutar, se esvaia de energia e se apague. Que, assim como em ondas vem, em ondas vai, a permitir que se lhe acompanhe a ida como permitiu assistir a vinda em intenção clara de se fazer sempre presente, vigilante, a derrubar o andor e o não-santo. É a queda primordial, lembrada de tempos em tempos, para que eu admita que não sou, pois, de barro.
4 Comentários:
Quando lhe leio sobre a dor, vá saber-se por quê, parece que me leio a mim. Acontecera já no texto sobre a impossível medida da dor. Escrevi resposta, longa pa dédéu..., e no final a rede deu de si, encalhou,, desandou, as letras se perderam, e sua dor ficou sem resposta. Você define a dor como jamais havia lido, e não sei tão pouco o que possa ser uma dor de cabeça forte, muito menos uma enxaqueca. Mas, e contrariando o que diz no primeiro texto sobre este assunto, ambas, física e de emoção, são pares em características que só identifica quem sente. A dor que se diz não ser física é-o de facto: constrange, silencia, transmuta, enlouquece, desracionaliza, cega, se amonstrua, dilacera, corta, fere, rebenta e... no final, depois de morta, ela regressa. Feito monstro de filme que nunca morre, para render na próxima saga... o que rende a dor eu não sei, a não ser que nos lhe rendemos, uns de uma forma e outros de outra, cada um "à sua moda", mas ela ganha sempre, dos pés à cabeça, ela nos toma. Pudesse apaziguá-lo em sua dor o faria de pronto. Dizem que "de boas intenções está o inferno cheio", mas convém não esquecer que ele está mais cheio ainda das más!
sem brisa, sem som, sem nada, e que a simples leitura destas linhas lhe não agravem o "lobo" (frontal). :-)
Olá!
Já ganhou meu voto, por ter escrito a verdade.Espero sua visita.
UFMing, concordo que ambas as dores são pares. Sim, são pares, andam, juntas ou separadas, e, semelhantes entre si, somente podem ser identificadas por quem as conhece intimamente. Sobre tudo o que falastes da dor de alma, eu aplico para a dor física. São, ambas, lancinantes e ferem de formas diferentes e, se não me engano, em praticamente igual intensidade. As minhas, as duas, que as tenho, sim, aos pares ou em visitas isoladas, mas sempre solícitas, cheias de agrados e risinhos tão logo se as identifique, são de longa data. Eu as rejeito mas não elas a mim. O lobo me doeu até a tarde deste sábado, acredite se quiser. Foram mais de 60 horas entre saltos no vazio e depressões profundas, tão funda a dor se me aprofundou em dilatações das têmporas. Os lobos, frontas e virtuais, nada fizeram. Quedaram-se imóveis, à espera do descongelamento. Eu lhe agradeço pelo gesto de apaziguamento da minha dor. Embora não tenha efeito, de fato, o efeito se dá em outra sintonia, eu acredito e, portanto, me desminto e digo: tem efeito, sim. Agora, padeço do cansaço físico que sobrevem à dor física (e também à outra). É como se o corpo tivesse lutado e agora jaz, exaurido. Mas já estou bem. Não digo que pronto para outra que isso nunca direi. Se elas, as dores, ouvirem isso, são capazes de voltar a galope, radiantes como sabem ser em sua própria luz negra. Que se diz da luz negra que é excesso de luz, não? Beijo!
Kinha, obrigado pelo voto e pelo crédito à minha expressão de dor. Te visitarei, pois. Abraço!
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