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domingo, 17 de janeiro de 2010

Meu rugido dominical

Ainda não se sabe ao certo - e talvez nunca se saiba - o número de vítimas provocado pelo terremoto que devastou Porto Príncipe, a capital do Haiti. As estimativas variam entre 100 mil a 200 mil mortos e, até este final de semana, o governo haitiano havia divulgado que podem ser 140 mil as vítimas. Até ontem, haviam sido enterrados 50 mil corpos, a maior parte em valas comuns, abertas às pressas porque não há mais tempo. Depois de cinco dias do evento - que ocorreu na terça-feira passada, dia 12 -, as possibilidades de resgatar pessoas com vida são cada vez mais remotas. Ainda ontem, quatro dias depois do terremoto, foram resgatados haitianos com vida, entre eles um bebê, o que demonstra a força de um ser humano para sobreviver. Comprovadamente, o máximo que um ser humano suporta em condições precárias de oxigênio são 96 horas, ou seja, quatro dias.





Em maio do ano passado, a região chinesa de Sichuan também passou pelo desespero do Haiti: foram 68 mil mortos e mais de 4 milhões de feridos. No Haiti, estima-se que a maior parte da população de Porto Príncipe, de 3 milhões de pessoas, tenha sido atingida diretamente pelo terremoto, cujo epicentro aconteceu há apenas 17 Km da capital. Balanços preliminares dão conta de que cerca de 250 mil estão feridas e há 1,5 milhão de desabrigadas, respectivamente, 10% e 50% da população total da cidade. Estima-se que há 37 mil mulheres grávidas nas regiões atingidas.


O tsunami da Ásia, em 2004, matou 220 mil pessoas. Mas, ao contrário do Haiti, havia, nos países asiáticos, estruturas locais que faziam com que a ajuda internacional chegasse a cada uma das localidades. Havia estradas, máquinas e os mais diversos órgãos governamentais para dar vazão à assistência humanitária do exterior e às doações.


Isso não ocorre no Haiti: o espaço aéreo teve que ser assumido pelos EUA porque o Haiti não tinha (de fato, nunca teve completamente) como gerenciar as chegadas de aviões do mundo todo. A Missão da ONU para a Estabilização do Haiti (Minustah), comandada por militares brasileiros, composta por 7 mil integrantes (dos quais 1.266 são brasileiros), tem tido dificuldade para distribuir alimentos, remédios, água e roupas para os desabrigados. Na situação caótica em que se encontra o Haiti, há milhares de gangues que se formaram rapidamente e passaram a atuar em saques, tumultos e, inclusive, em ataques a comboios humanitários.


Esse cenário primitivo é típico de situações de guerra. Vale a lei do mais forte. O Haiti é formado, na maior parte, por uma população jovem. E são esses jovens, homens, que, de repente, se converteram em hordas de assaltantes, assassinos e que farão qualquer coisa para obter benefícios ante a 'concorrência' com milhares de outros semelhantes.


Porto Príncipe é, neste momento, uma terra sem lei. Vigora apenas a mais básica e instintiva lei humana: a do salve-se quem puder. Quem puder pegar a água, a comida, o remédio. Quem puder receber as doações e revendê-las, se sai melhor. Instala-se, em cenários assim, rapidamente, o comércio: o homem mais forte dominará um bairro, regiões e algumas centenas de pessoas.


A eventual solidariedade estabelecida nos primeiros momentos do terremoto, que acometeu a todos com a mesma intensidade, esfarela-se nas horas seguintes. Sempre há os que se adiantarão e tentarão encontrar vantagens em meio à catástrofe. Não por coincidência, apenas duas ou três organizações humanitárias mundiais decidiram fazer doações em dinheiro. A maior parte dos doadores internacionais preferiu converter essas doações em outros tipos de necessidades.


O Haiti é um dos países mais corruptos do mundo e, muito provavelmente, os órgãos públicos que drenarão o dinheiro recebido serão atacados por todos os lados de forma que, ao chegar ao destino, o dinheiro doado terá sido convertido numa infinitesimal fração em relação ao montante original.
Por tudo isso, muitas pessoas e organizações no mundo todo, por vezes, podem se indignar. Foi o que fez a cantora Sandy no Twitter. E o fez de forma totalmente equivocada. Disse a cantora: "Tudo bem que a quantidade de vítimas foi bem maior no Haiti do que a de vítimas de catástrofes aqui no Brasil; mas tenho ouvido muito mais notícias de gente se mobilizando pra ajudar o Haiti do que eu vi acontecer por aqui. Será que isso é justificável?". E ainda completou: "Não estou querendo desmerecer a tragédia que ocorreu por lá, mas pense nisso". A cantora tem quase 300 mil seguidores no Twitter e foi imediatamente atacada por todos os lados.


Claro que Sandy está errada. Claro que tragédias não se comparam. A minha tragédia pessoal, por exemplo, terá a magnitude do mundo. Ao passo que a tragédia de 68 mil chineses ou 100 mil haitianos choca mas não é, propriamente, minha. Isso não faz com que eu passe, de repente, a comparar as tragédias e dar a elas notas pelo grau de importância. Sandy referia-se às seguidas tragédias provocadas pelas enchentes no Brasil que acontecem desde novembro do ano passado.


Mas, Sandy, você que é tão crítica, por que, por exemplo, antes de dizer besteira, não promoveu um show com o objetivo de arrecadar recursos para essas tragédias anteriores ao Haiti? Por que vem agora a público ofender milhões de pessoas? Acaso você sabe que o Haiti tem infraestrutura básica zero? Que não tem tratores? Não tem estradas? Que, em Porto Príncipe, as ruas são demais estreitas para que pesadas máquinas e caminhões possam trafegar a fim de desobstruir as passagens? Não Sandy. Você não sabe de nada disso.


Teria feito mais se houvesse doado, em silêncio, uma parcela do que ganhou. Ninguém é obrigado a fazer doações. Mas as fazemos porque imediatamente nos identificamos com o sofrimento alheio. Porque não pensamos se a tragédia que destruiu São Luis do Paraitinga é maior do que a que aconteceu em Porto Príncipe. Porque o Brasil, com todas as deficiências que tem, é capaz de acudir e apoiar essas tragédias. A própria cidade de São Luis do Paraitinga já recebeu aporte de R$ 10 milhões para restauração e reconstrução.


Mas o Haiti precisa de bilhões de dólares. Ainda hoje mesmo li que o pavor dos haitianos é que, passada essa onda mundial de altruísmo eregida à força da tragédia, o Haiti volte, em alguns dias, à condição de país abandonado novamente. Li também que, enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina cresceu, em média, 82% entre 1990 a 2008, o Haiti cresceu apenas 5% no mesmo período. E que a crise que se seguiu ao embargo econômico promovido pela comunidade internacional a partir de 1991 cortou 30% do PIB haitiano.


Portanto, Sandy (e qualquer outra pessoa que pense em níveis tão superficiais), o Haiti está no escuro porque a história das colonizações (primeiro, a espanhola, e depois, a francesa), das sucessivas intervenções estrangeiras (dos EUA, particularmente) e, finalmente, dos golpes políticos locais, reduziram o país a nada: a expectativa de vida, em 1960, não passava dos 44 anos e não deve ser muito diferente nos dias atuais; cerca de 78% das pessoas maiores de 15 anos eram analfabetas; e a economia, fortemente baseada na agricultura, praticamente acabou, quando os agricultores se endividaram, os solos foram esgotados e, por fim, as florestas do Haiti acabaram em carvão industrial.


Por tudo isso, o que vê hoje no cenário de guerra do Haiti é essa massa de destruição, fome e desespero que leva as pessoas a agirem como matilhas de cães selvagens. Os haitianos brigam, primeiro, pela sobrevivência imediata. Mas, no íntimo, temem que esse terremoto seja apenas mais uma expressão da sua longa e angustiante história de miséria, fome e desamor do mundo pelas tragédias de seus semelhantes.


Já fiz dois posts com indicações de doações a quem queira fazê-las ao Haiti. Volto a postar aqui dados de instituições que recebem doações para ajudar as vítimas do terremoto no Haiti. Se você puder, #HelpHaiti:


- Embaixada do Haiti no Brasil
Banco do Brasil
Agência 1606-3
Conta corrente 91.000-7
CNPJ 04170237/0001-71

- Cruz Vermelha
HSBC
Agência 1276
Conta corrente 14526-84
CNPJ é 04359688/0001-51

- Viva Rio
Banco do Brasil
Agência 1769-8
Conta corrente 5113-6
CNPJ 00343941/0001-28

- Care Internacional Brasil
Banco Real-Santander
Agência 0373
Conta corrente 5756365-0
CNPJ 04180646/0001-59

- Pastoral da Criança
HSBC
Agência 0058
Conta Corrente 12.345-53
CNPJ 00.975.471/0001-15

Caixa Econômica Federal (*)
Agência 0647
Conta corrente 3.600-1
CNPJ 00.360.305

(*) As doações da Caixa serão encaminhadas à Coordenação de Assistência Humanitária (Ocha, na sigla em inglês) pelo Programa Mundial de Alimentação (PMA) da Organização das Nações Unidas (ONU) e pelo Escritório das Nações Unidas.

10 Comentários:

claudia disse...

redneck, vc é muito bom!

Mauri Boffil disse...

Sandy... eca!

João Roque disse...

Sérgio
e há ainda as BESTAS!!!!
Como aquele congressista ou senador americano que afirmou num talk show que tinha sido bom ter acontecido este tremor de terra pois o Haiti estava possuído pelo demónio e isto é uma forma de o expulsar, ou de um bispo espanhol, que afirma estar mais preocupado com a falta de espiritualidade do mundo do que com o que aconteceu no Haiti.
Não há palavras para tamanhas asneiras.
Abraço grande.

Maria Izabel Viegas disse...

Magnífico post, não podemos numa tragédia deste teor citar comparações. miséria e horrores não se comparam. São intensamente tristes e por trás delas, a fome, a tragédia, o estado de caos para uns muitos tolos está num mundo que parece ser um filme de ficção.
Ante tais visões, quando nada tem a se dizer... ficar calado e ajudar é mais digno!

Redneck, coloquei um post no meu Blog e , nele fiz um link para o teu post sobre "Como mão tornou-se humana".
Seu Blog é divino... vc super inteligente.
Caso vc não aprove, por favor me manda em comentário... que eu retiro.
Desculpe-me se não o consultei.
Gostaria muito que as pessoas que lêem o meu blog vissem o teu artigo.
Meu Blog é bem simples... mas meu apreço por vc é enorme!
Beijos!

gentil carioca disse...

E para (não) falar de tragédias "pessoais", me ocorreu que os doentes crônicos - faixa na qual me insiro - estão inexoravelmente fadados à morte quando dessas catástrofes: quem será que está providenciando insulina para os diabéticos haitianos?
E os que têm que fazer hemodiálise, ou continuar a quimioterapia?
Putz.

Redneck disse...

Cláudia, obrigado! Você é ótima também. Beijo!

Redneck disse...

Mauri, a postura de bonequinha da Sandy, com todo lenga-lenga de menininha fofinha é eca mesmo. Abraço!

Redneck disse...

João, não sei porque algumas pessoas desatam a soltar tamanhas asneiras. Talvez inspiradas pela própria falta de conteúdo, se vejam em posição de emitir opiniões que seriam, elas sim, melhor se permanecessem soterradas dentro dos respectivos cérebros. Li hoje que muitos artigos na imprensa europeia creditam os acontecimentos no Haiti ao divino e se perdem em busca de explicações. Para mim, é simples assim: pobreza, falta de estrutura e miséria somadas com eventos da natureza somente podem resultar em destruição em massa. Abraço!

Redneck disse...

Izabel, obrigado! É claro que você pode usar ou fazer referências a posts daqui. Sem nenhum problema. Fico lisonjeado pelo teu comentário e pelo apreço a que você se referiu. Você é sempre bem-vinda. Beijo!

Redneck disse...

Gentil, quando li que havia 37 mil mulheres grávidas no meio de tanta tragédia, pensei igualmente nos pacientes que deveriam estar espalhados nos nove hospitais de Porto Príncipe, dos quais restaram, mais ou menos inteiro, apenas um. Sim, a cada dia que passa, mais horrores virão à tona, trazidos não apenas pela remoção dos escombros, mas também pela exposição dos mais profundos problemas que assolam o Haiti desde sempre. Tudo, nesse caso, é catastrófico. Beijo!

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Redneck, em inglês, define um homem rude (e nude), grosseiro. Às vezes, posso ser bem bronco. Mas, na maior parte do tempo, sou doce, sensível e rio de tudo, inclusive de mim mesmo. (Redneck is an English expression meaning rude, brute - and nude - man. Those who knows me know that sometimes can be very stupid. But most times, I'm sweet, sensitive and always laugh at everything, including myself.)

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