Os desarvorados sob a árvore
1914: com as demandas geradas pela I Guerra Mundial para uma produção industrial com o fim de atender o conflito, os governos europeus acumularam poderes para agilizar decisões importantes. A princípio, esses poderes seriam revertidos à incipiente democracia europeia, tão logo a guerra acabasse. Isso não aconteceu. Ao contrário, converteram-se, esses poderes, em longínquos estados totalitários.
O totalitarismo é um regime político baseado na extensão do poder do Estado a todos os níveis e aspectos da sociedade. Adolf Hitler, Josef Stalin, Benito Mussolini e Mao Tse-tung, ainda que pesem algumas diferenças ideológicas entre totalitarismo, fascismo e comunismo, foram os representantes máximos desse tipo de regime.
No totalitarismo, o Estado se arvora como ente máximo na 'gestão' dos cidadãos e se dá o direito, total, de reprimir, conter, deter, impedir e punir o indivíduo que o confrontar. As pessoas contrárias aos limites impostos são classificadas de opositoras, subversivas e dissidentes. Em graus extremos, são, sumariamente, liquidadas.
2009: um exilado político, ex-presidente da então contestatória União Nacional dos Estudantes (UNE), retorna ao País em 1978 e reassume a trajetória política interrompida pelo exílio. José Serra, governador do Estado de São Paulo, eleito em 2006, é filiado ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). No último dia 7 de agosto, entrou em vigor a Lei 13.541, popularmente chamada de Lei Antifumo. No site de divulgação da lei, há o seguinte parágrafo: "a nova lei restringe, mas não proíbe o ato de fumar. O cigarro continua autorizado dentro das residências, das vias públicas e em áreas ao ar livre. ...Os fumantes não serão alvo da fiscalização."
A democracia é um regime de governo onde o poder de tomar importantes decisões políticas está com os cidadãos, direta ou indiretamente.
A lei antifumo, em momento algum, foi debatida. Ao contrário, nos foi imposta. E é nesse momento em que confluem totalitarismo e democracia. E isso me faz lembrar a expressão: "Isto é uma democracia, mas quem manda sou eu". Ou melhor: "L'État c'est moi' (O Estado sou eu), frase atribuída ao rei Luís XIV da França, um monarca absolutista que reinou entre 1643 e 1715.
Sou fumante e não rechaço delimitações que protejam o não-fumante. Na minha casa, fumávamos meu pai e eu. Meu pai faleceu de ataque cardíaco e, embora não esteja comprovado, uma das causas prováveis é o cigarro. Ouço isso de tempos em tempos de todos os meus familiares. Sei de todos os males e das consequências do fumo.
Portanto, o fato de eu fumar é uma opção minha e, não sendo eu próprio um ser totalitário, não devo impor aos demais as consequências do meu ato. E não o faço. Respeito os ambientes da casa da minha mãe e outras dependências. Respeito os veículos alheios. Nunca me atrevi a acender um cigarro no banheiro do avião. Me incomoda que a fumaça do meu cigarro alcance o(a) meu(minha) interlocutor(a). Se estou em algum ambiente de terceiros, peço licença para fumar e, se não ma concedem, compreendo perfeitamente.
As políticas públicas de saúde, as entendo, embora não compactue com elas inteiramente. Mas não entendo algumas pessoas que radicalizam e, xiitas, querem me impor suas próprias convicções. E o fazem por meio de banimentos, isolamentos e exposição de forma que, aos olhos dos demais, eu me assemelhe a um pária. Não é exagero. Já passei por essa situação.
É como se, ao ser fumante, eu, automaticamente, passe a representar um segmento da sociedade que deve ser execrado e, se não me juntar ao rebanho 'saudável', devo ser reprimido, contido, detido, impedido e punido. Logo, sofro as repressões do totalitarismo. Sem chance de retrucar. "Os fumantes não serão alvo de fiscalização", divulga o site. Mentira! Somos alvo de fiscalização moral. Não importa que aquele que me critique polua, com seu automóvel. Não importa que aquele que me aponta o dedo aja como um dedo-duro, personagem corriqueiro de regimes totalitários.
A gente que delata sempre o faz, preferencialmente, como se telhados de ferro tivesse, e não de vidro que se estraçalham às primeiras pedras atiradas por outros delatores. Porque é assim que funciona: começa-se com uma lei rigorosa (aprovada, inclusive, por 77% dos fumantes) e ocupa-se espaço. Depois, o governo, animado pelas pesquisas e perspectivas de boa colheita política, amplia seus tentáculos. E, ao invés de democracia, vivemos um totalitarismo, um Estado absolutista.
Me soa estranho um ex-exilado agir como se o Estado fosse ele próprio. Logo quem lutou contra o poder do Estado de se imiscuir na vida do cidadão. E, lembre-se, Serra é ex-fumante e aspira a presidência deste País. Dois motivos que, mais do que nunca, o influenciam a fazer uma plataforma que o identifique como um cidadão do bem e antenado com o mundo moderno (restrições ao fumo nos EUA e Europa). Bem, a Europa não é exatamente pródiga em boas ideias. E quanto aos EUA, declino de comentar.
No último domingo, estávamos uma amiga e eu no Espaço Unibanco de Cinema, na Rua Augusta. Quer dizer, no chamado "Anexo" do Espaço, que fica no outro lado da rua, quase em frente ao Espaço Unibanco. Nesse anexo, há uma área livre e uma imensa árvore. A administração do local colocou pequenas mesas e cinzeiros ao redor dessa árvore. No domingo, havia competição para ocupar os bancos sob a árvore e comentei com a minha amiga que éramos os desarvorados sob a árvore. Sob os olhares dos demais frequentadores, nos arvoramos em animais expostos, talvez a caminho da extinção, a brigar não por um lugar ao sol, e sim um lugar à sombra. Que a árvore, coitada, converteu-se, de um dia para o outro, em instrumento exaustor de nossas espiraladas trilhas de fumaça.
Reproduzo abaixo parte do artigo (do dia 18 de agosto) do colunista João Pereira Coutinho, que escreve às terças-feiras no jornal Folha de São Paulo, com qual teor concordo plenamente:
"...Ainda está para aparecer o primeiro estudo cientificamente rigoroso capaz de mostrar uma relação sustentada entre 'fumo passivo' e câncer.
O que não significa que não existam estudos sobre essa hipótese. Christopher Booker, um especialista sobre as nossas histerias modernas, normalmente lembra dois. Os maiores e mais recentes. O primeiro foi realizado pela Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer, da Organização Mundial de Saúde (OMS). O segundo foi dirigido, durante 40 anos, por James Enstrom e Geoffrey Kabat para a Sociedade Americana de Câncer através da observação de 35 mil não-fumantes que conviviam diariamente com fumantes. Resultados? Repito: um mito é um mito é um mito.
Mas a ideologia é a ideologia é a ideologia. De vez em quando, afirmo que alguns traços nazistas sobreviveram a 1945. Sou insultado. Não respondo. Basta olhar em volta para perceber que algumas das nossas rotinas médicas mais básicas teriam agradado ao tio Adolfo e à sua busca de perfeição eterna. Exemplos? Certas formas de eugenia 'respeitável', praticadas por milhões de pessoas quando recebem uma má ecografia (ou ultrassom; o autor se refere a, provavelmente, má formação dos fetos e as consequentes decisões de se ter ou não a criança). Ou a demonização absoluta que o fumante moderno conhece nos EUA e Europa. E agora, hélas, em São Paulo.
Leio a legislação antifumo do Estado de São Paulo e reconheço a natureza totalitária dela, novamente dominada por uma ideia iníqua de perfeição física.
Tudo começa pela elevação da mentira a dogma: o dogma de que o 'fumo passivo' é um perigo fatal para terceiros. O dogma não é apenas fantasioso; é também perigoso, porque estabelece de imediato uma divisão moral entre os agentes da corrupção (os fumantes) e as vítimas inocentes (os abstêmios). É só substituir 'fumante' por 'judeu'; e 'abstêmio' por 'ariano' para regressar a 1933.
E regressar a 1933 é regressar a um mundo que desprezava a liberdade individual com especial ferocidade. A lei anifumo cumpre esse propósito. Proibir o fumo em lugares fechados, como bares e restaurantes, é um ataque à propriedade privada e à liberdade de cada proprietário decidir que tipo de clientes deseja acolher no seu espaço. O mesmo raciocínio aplica-se aos clientes, impedidos de decidir livremente onde desejam ser acolhidos.
Mas o melhor da lei vem no policiamento. Imitando as piores práticas das sociedades fechadas, a lei promove a delação (dedo-durismo) como forma de convivência social. Por telefone ou pela internet, cada cidadão é convidado a ser um vigilante do vizinho, denunciando comportamentos 'desviantes'. Isso não é regressar a 1933. É, no mínimo, um regresso à Rússia de 1917. Se juntarmos ao quadro uma verdadeira 'polícia sanitária' que ataca à paisana, é possível concluir que o espírito KGB emigrou para o Brasil.
Finalmente, lembremos o essencial: os extremismos políticos só sobrevivem em sociedades cúmplices, ou pelo menos indiferentes aos extremistas. Será São Paulo esse tipo de sociedade?
Parece. A última pesquisa Datafolha é sinistra: a esmagadora maioria dos paulistas (88%) aprova a lei antifumo. Só 10% se opõem a ela. Só 2% lhe são indiferentes. Mais irônico é olhar para os fumantes: depois de anos e anos de propaganda e desumanização, eles olham-se no espelho, sentem o clássico nojo de si próprios e até concordam com a lei (77%). Razão tinha Karl Kraus quando afirmava, na Viena de inícios do século (XX), que o antissemitismo era tão normal que até os judeus o praticavam. Péssimo presságio."
Comecei a escrever este post no domingo, logo depois do episódio de 'desarvoramento sob a árvore". Na ocasião, minha amiga citou a palavra "totalitário". Depois, me deparo com a coluna parcialmente reproduzida acima. Eu mesmo já havia usado o totalitarismo para fazer a relação com a lei. O quero dizer é que, fumante ou não, que não se olvidem as liberdades individuais. Uma ação ali e outra acolá e teremos, finalmente, um Estado absolutista a comandar nossos passos em todos os espaços, sejam públicos ou privados. Isso tudo me estava engasgado há tempos, o que motivou o extenso post. Desabafei! Com uma previsível tragada de cigarro, claro.
2 Comentários:
Desarvorada como você, só posso dizer uma coisa:perfect.
Bjs
Patty, obrigado, o desenvolvimento do post foi devidamente completado com a nossa experiência arborígene. Mais um pouco e seremos como o mico-leão dourado: raro e a viver em árvores. Talvez seja melhor mesmo, tal qual o fez "O Barão nas Árvores", de Italo Calvino. Podemos tentar. Beijo!
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