Meu rugido dominical
"Aproveite para descansar da badalação hoje. Trate bem de suas necessidades, reconheça que você também necessita de um ambiente simpático, acolhedor e amigo para se sentir bem disposto. Dormir e exercitar seus dotes culinários podem ser ótimas alternativas criativas." (*)
Geralmente, sou bastante cético em relação a horóscopos. Nunca os leio, a não ser quando alguém se lembra de ver no jornal. Daí, como um bocejo, a vontade me contagia. Genericamente, os textos tendem a ser mais ou menos apropriados.
Em relação ao enunciado acima, extraído do jornal deste domingo, 16/08, não há nada extremo. São atitudes de bom-senso. Não preciso de um horóscopo para saber delas e senti-las.
Vou traduzir alguns pontos:
"Aproveite para descansar da badalação" - bem, as baladas têm sido bastante raras. Se tenho cansaço, é justamente do contrário, do fato de não gastar uma energia acumulada em baladas. Porque balada, para mim, consiste, sobretudo, em dançar até à exaustão. Fazer do corpo uma corda vibratória que tensiona junto com as notas, diapasão que estrila e ora se retesa, ora se contrai, ora se esvai em pura energia sonora. Isso é balada. Transformar-me, eu mesmo, em badalo de sino que reverbera sons e viajar léguas como o doce trinado do sino que tocava na (e a) capela da zona rural na qual eu nasci e vivi parte da minha infância.
"Trate bem de suas necessidades" - mais do que nunca, estou cônscio de minhas necessidades. Sejam físicas, espirituais ou materiais, sei exatamente em que chão devo pisar e quais terrenos evitar. Ainda ontem, em encontro revival que se repete muitas vezes com pessoas as quais eu prezo bastante, falávamos justamente da maturidade e das vantagens que dela advêm. Das necessidades de se cuidar, de se olhar mais e ao espelho. Do que o espelho conta. Não mais uma subtração, e sim adição. De linhas do tempo a percorrerem a expressão facial mas não só. Também de um olhar acurado, crítico ou acrítico a medir e quantificar o que se é em essência e aparência. São tantas as necessidades que, a se pensar muito sobre isso, pode-se cair em tentação de mais fantasiar do que realizar. Pés no chão e asas à imaginação, portanto.
"Reconheça que você... ambiente simpático, acolhedor e amigo..." - estou para encontrar qualquer pessoa que seja que não demande um refúgio seguro, um porto a aportar, um ninho a se envolver. É da condição humana e animal buscar abrigo, a ocultar-se em alcovas, a embrenhar-se em covas (ironicamente, seremos sepultados em covas). Claro que por instinto busca-se o simpático, acolhedor e amigo. Até mesmo uma trincheira de guerra pode ser acolhedora quando você tem a seu lado o soldado amigo. Quase sempre, acredito, precisamos da familiaridade - de pessoas, objetos, cheiros - para nos sentirmos, de alguma forma, protegidos. Até mesmo, no extremo, contra nossos próprios atos e pensamentos.
"Dormir..." - vario entre sonos pesados e perdas irreparáveis de sono, insônias constantes e sonolências perdidas ao longo dos dias e noites. Dormir é reparador ou assustador. Uma amiga sempre me diz que, quando está triste, aborrecida ou deprimida, primeiro chora. Depois, cansada de chorar, dorme. Dorme profundamente e acorda com olhos inchados. E cansada. Sem reparação. Houve épocas em que eu tinha pesadelos repetitivos a me atormentarem e eu temia o sono por sabê-lo precursor dos horrores que o cérebro geraria em imagens. Mas não havia como contê-lo e não foram poucas as vezes em que me levantei bruscamente para fugir aos fantasmas que pairavam na inconsciência e inconsistência de sonhos.
"...e exercitar seus dotes culinários" - oras, bem eu sei que na prática, a teoria é outra. O exercício culinário a que me proponho é o de combinar desejos glutões (querer) com um senso irracional de limitar a hepáticas doses alimentares (poder) a comida. Consumidor voraz de publicações gastronômicas, mais viajo pelos paladares alheios do que digiro em minhas próprias papilas gustativas sabores sonhados e reais. E que graça tem fazer pratos de reis sem banquetear-me feito fanfarrão? Aplausos não enchem barriga e o temível ronco do estômago ruge lá do fundo da toca.
"Alternativas criativas" - a criatividade pode ser extremamente tolhida por um pensamento pequeno que seja. Criatividade é uma musa que galopa sempre à frente. É a cenoura que atrai o burro na imagem pela qual o animal anda para alcançar o inatingível, e mesmo assim continua, ou a calda que magnetiza o cachorro em círculos risíveis e que nos faz pensar sobre a rotação eterna sem saída. A alternativa? De repente, é melhor parar e esperar o mundo passar por ali ao invés de tentar circundar o mundo. Eu sei. Isso não é criativo e nem inteligente. Mas, somente por despeito, por vezes eu realmente paro.
A astrologia é considerada por cientistas como uma pseudo-ciência ou superstição. Na prática, equivale dizer que cientistas buscam evidências. O que, claro, a astrologia não é capaz de prover. Particularmente, não creio em leituras de astros que possam me traduzir. Mas acredito na influência cósmica do todo. Eu, parte do todo, sou afetado, em microcosmo, assim como as marés são puxadas pela força lunar.
Por ora, vou refutar as indicações proferidas pelo oráculo e fazer o oposto: me cansar, sair do ambiente amigo para o hostil, não pensar em nada relacionado a cozinha, exceto na inevitável água, e depois, bem depois, dormir o sono dos justos, indiferente a astros e estrelas.
(*) Segundo a coluna Astrologia, de Barbara Abramo, do jornal Folha de São Paulo.
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