Caramujos e veados combinam
"Nós nos imaginamos na pele do animal. Nos perguntamos onde será que ele pisa? Em caramujos e samambaias. Os sabores combinam. Caramujos e veados vivem juntos. Têm uma simbiose". Parece uma citação de Charles Darwin, não? Ou, se você deixar a imaginação correr, poderia dizer que é alguma elocubração de Alice perdida no País das Maravilhas e às voltas consigo mesma. Nem uma coisa nem outra. Se bem que Darwin calha bem nesse contexto porque o "Homo homini lupus" ou o homem é o lobo do homem, de acordo com Thomas Hobbes.
Mas já vai adiantada a hora e não tenho que divagar mais do que deveria. Na verdade, há muito tempo não abordava esse tema, um dos meus preferidos depois de mim mesmo (hehehehe!!! é brincadeira, bobinho(a)!!!). Falo sobre a gastronomia. E, exatamente por fazer tanto tempo, o faço com luxo: o post é sobre o Noma, o restaurante número 1 do mundo, a se confiar na The S.Pellegrino Best Restaurant in the World, da revista Restaurant.
A frase grafada em itálico no início do texto é do chef Rene Redzepi, do badaladíssimo restaurante Noma, de Copenhague, Dinamarca. "Muito do que vemos é comestível", diz o chef, que gasta parte do tempo na caça de novidades no próprio solo (e mar) da Escandinávia. Redzepi é o que se chama de "ser instintivo", como se definiria um neanderthal em busca de caça. Primitivo, experimenta ervas - cocleária, azedinha, coentro do mar, mostarda silvestre, campânulas - que comporão seus pratos com outras excentricidades como ovos de papagaio do mar da Islândia e carne de muskox (mamífero do Ártico conhecido como bisonte). Tem uma coisa no chef Redzepi de que eu gosto muito: ele usa apenas ingredientes da região nórdica, com as notáveis exceções do café e do chocolate.
O Noma foi aberto em Copenhague em 2003 e os frequentadores não só não entendiam a comida de Redzepi como a reprovavam. Enquanto ele servia cloudberries (erva nativa das regiões boreais), as pessoas queriam foie gras, por exemplo. Bastaram apenas sete anos para que o Noma fosse inscrito, a partir do reino de gelo da Escandinávia, no mundo contemporâneo da gastronomia mundial.
Estamos em 2010 e o Noma tem duas estrelas Michelin. Recebe reservas com três meses de antecedência e tem apenas 12 mesas que acomodam 40 pessoas. O chef do Noma é um chef locavore - que promove e pratica a gastronomia com ingredientes locais. O chef afirma que o melhor que um restaurante pode oferecer é servir a comida mais fresca e mais autêntica naquela região em que está incrustrado. No caso, a região escandinávia. E ao pensar assim, Redzepi desencavou, com o auxílio de dois historiadores da comida dinamarquesa, tradições esquecidas como o sea buckthorn (frutinha que tem gosto de laranja picante), rose hips (rosa canina, google-se) e aglio orsino (google-se again) para compor um tira-gosto completamente original.
Os dinamarqueses usavam cinzas de feno como tempero no passado. O chef resgatou a cinza. A cinza de feno tem um leve sabor de pipoca (eu nunca experimentei mas lembro de batatas doces assadas na brasa que trazem consigo o sabor da madeira queimada) e Redzepi as serve como guarnição para ovos e centoias (sorry, você terá que googlar ad eternum). Uma das entradas combinas tubos finos e longos de carne de molusco envolta em salsinha servidos em "neve" de rabanete congelado e suco de salsinha e molusco. O sabor - depoimento de quem o experimentou - remete a sushi com wasabi, mas mais limpo, luminoso (!) e cortante.
O quintal de Redzepi é pródigo - Dinamarca, Islândia, mar Ártico, Suécia, Finlândia, mar Báltico - e é onde ele obtém langoustine, que devem ser comidas com as mãos de forma que os dedos cavuquem a carne da lagosta. Isso é a conexão com a natureza que o chef pretende obter. Por isso, legumes crus são apresentados à mesa em vasos cuja "terra" é feita de farinha de avelã maltada com emulsão de iogurte de cabra, estragão e outras ervas. Em outra vertente, marítima, um prato de camarões e pó de ouriço do mar é montado à guisa de uma paisagem praiana, com pedras e tufos de grama.
O Noma tem 24 cozinheiros de seis países diferentes. Aos 15 anos, Redzepi foi fazer uma escola de restaurante apenas para seguir um amigo. Foi quando descobriu a simbiose com o fogão. Da Dinamarca, foi para a França e, depois, para o el Bulli, de Ferran Adriá, na Espanha. Foi quando aprendeu que as regras podem ser jogadas janela afora. "Voltei com senso de liberdade". Passou ainda pelo californiano The French Laundry, de Thomas Keller, e de lá extraiu a ordem impecável na cozinha.
O Noma encontrou, nas expedições do chef Redzepi, o ponto em que caramujos e veados trilham o mesmo caminho, sobre as samambaias dinamarquesas. E associou, portanto, que veados deveriam ter assimilado, em algum momento, tanto a samambaia quanto o caramujo na alimentação. E viu nisso a simbiose entre caramujos e veados. É, a diversidade combina. Inclusive e ostensivamente na cozinha. Noma vem de "No" (nórdico) e "ma" de "mad" (alimento). O alimento nórdico não tem preconceito. É livre, como o chef Rene Redzepi.
(a maior parte deste conteúdo foi extraído de matéria publicada originalmente no The New York Times e reproduzida pelo portal iG, no Brasil)
2 Comentários:
Meu caro Sérgio
em determinados assuntos sou muito conservador (demasiado, talvez); não há para mim como uma boa comida caseira sem grandes experiências, que podem ser interessantes, mas nunca entusiasmantes.
Sabes o que este teu texto me recordou? Um excelente filme que vi há anos: A Festa de Babette!
João, você já sabe que sou completamente o oposto e tendo a ser extremamente liberal (já comi coisas que nem ouso colocar aqui). Quanto ao filme, a primeira vez em que o assisti fui a pedido da professora de história da arte da faculdade de jornalismo. Eu amo esse filme, tanto pela gastronomia quanto pela "santa ceia" que a chef promove entre a comunidade. Beijo!
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