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sábado, 24 de abril de 2010

The book is on the table

Meu último post nesta seção foi no dia 12 de dezembro do ano passado. Lá se foram quase cinco meses e a impressão que dá é que não li nesses meses. Ledo engano. Pode faltar tudo na vida. Arroz, feijão e pão. Só não quero que me falte a danada da cachaça literária. Isso nunca.


Apenas para registrar, quando viajei no final do ano, levei comigo seis novos livros e os devorei em pouco menos de 15 dias. Depois, de janeiro para cá, devo ter comprado, por cima, uns 25 novos livros. Eu havia reservado esses livros novos, já lidos, para resenhá-los na seção.


Mas, na mudança de apartamento, misturei novos recém-lidos com outros, novos e velhos, mais remotamente lidos. E fiquei sem referência porque, confesso, me deu preguiça procurar livro por livro em ordem cronológica (tenho o estranho costume de colocar a data de aquisição na primeira página e fazer comentários codificados aos quais somente eu tenho acesso).


Mas não posso deixar de registrar ao menos dois dessas quase três dezenas de livros. Um era um clássico e eu nem sabia. E adoro o prazer que a literatura me dá de me introduzir o novo, sendo o novo um clássico que eu desconhecia. E adoro também o novo, que, por forte teor literário, nasce clássico, numa heterodoxia que apenas a literatura, no meu entendimento, consegue operar.


O clássico ao qual me refiro são os "Contos Completos" - Flannery O'Connor - editora CosacNaify - 715 páginas. Veja a data da aquisição: dia 6 de fevereiro deste ano, dia em que eu estava simultaneamente desalentado e animado. Desalento por decursos da vida que, de vez em quando, nos atira ao relento e lá nos deixa, a sofrer as intempéries de céus e infernos. Animado porque, como se eu fosse um peixe, fui içado daquele pontual poço e trazido à superfície para me equilibrar novamente. Um mês depois, eu mudaria de apartamento. E, dois meses depois, eu mudaria do trabalho em casa, na versão freelancer, para o trabalho da redação, de volta ao convívio dos demais mortais. Céus e terras mudaram, portanto.




Volto ao livro porque, por não escrever com tanta frequência por aqui ultimamente, tendo levemente às divagações. Flannery O'Connor nasceu em 1925 e morreu em 1964. Menos de 40 anos e uma bela obra que os EUA legaram à literatura. Para mim, ler cada um dos contos foi como ouvir o lamentoso jazz, o soul, e algumas influências do folk do sul dos EUA - o "cinturão bíblico".


Os contos de O'Connor, ela mesma uma católica praticante, são estranhos. São permeados pela sombra que ainda pairava no país pós-abolicionista (a escravidão, nos EUA, acabou oficialmente em 1865). Mas os negros continuam escravos dos brancos e assim são vistos. Em alguns contos, trata-se de substituir a mão de obra escrava pelo estrangeiro com prejuízo para o europeu que é visto com desconfiança.


Ao lado do escravismo que se sente em cada conto (e a autora não toma partido, em absoluto, de qualquer lado que seja), há também um fundamentalismo religioso em que todas as ações são relacionadas ao Deus todo-poderoso que há de fazer a convergência de todas as almas, negras e brancas.


Os contos são violentos e crus. Ao contrário do que esperaria de uma autora conservadora e rigidamente católica, o que me passou é que não remissão. Não há perdão para a humanidade. Há, sim, crime e castigo. E sobre o jazz e o soul a que me referi é porque, a determinada altura, tudo parece se transformar num lamento. O lamento que se faz sobre a obra imperfeita que é a humanidade. O lamento de saber que não há como mudar isso. O lamento de chorar sobre isso e sobre si mesmo, dado que a nós nos é dada essa autoconsciência impiedosa. O'Connor é muita coisa mas não é piedosa.


E a autora me chamou tanto com seus jazz e souls que esperei por dois meses, a navegar no Atlântico, a obra "Tudo o Que Sobe Deve Convergir", nome de um dos contos mais impiedosos da obra de O'Connor. Bem, admito que certamente a autora me enfeitiçou porque foi com desprazer que constatei que o livro vindo de Portugal apenas repete alguns dos contos presentes em "Contos Completos". Apenas alguns mudam de nome na transição linguística entre Portugal e Brasil. Para, finalmente, convergirem, ambos os livros, numa coisa só. Oras! Manterei os dois para me lembrar da minha ansiedade quando se trata de livros. Mas, sobretudo, leia O'Connor, não importa se na edição brasileira, portuguesa, norte-americana ou russa!


E os russos, ainda que gélidos e chegados à vodca, sempre estarão no meu coração literário. Antes, no dia 30 de janeiro deste ano, encontramo-nos, o russo e eu, numa prateleira da Fnac. A capa mais pareceria, à primeira vista, uma história boba, quase que primária: um humano com face daquele gato, aquele cujo sorriso se desfaz no ar em "Alice no País das Maravilhas". Mas talvez por conta do sorriso do gato de Alice, fui devidamente convidado a abrir a portinha (em livro, se diz que são orelhas) e ler os indícios daquele estranho mundo gatil. E não emiti nenhum miado de insatisfação. Ao contrário, ronronei ao encontrar excelente literatura. Sim, os gelados e vodqueiros russos nunca me entediam.


O livro é "O Mestre e Margarida" - Mikhail Bulgákov - editora Alfaguara - 453 páginas. O argumento do livro parte do dia em que Satanás e seu séquito chegam a Moscou. É uma alegoria ao regime stalinista, à União Soviética. Pode parecer um realismo fantástico e até parece. Mas o livro consegue se sobrepor a essa definição e devassa um país devastado por um regime linha-dura.




O autor demorou dez anos para concluir o livro, que é a sua obra-prima. Ainda em 1920, teve problemas sérios com a censura soviética e, portanto, escreveu este livro escondido. Doente (morreu aos 59 anos), ditou as últimas revisões à esposa em 1940, poucas semanas antes de falecer. E, 20 anos depois, o livro tornou-se um sucesso na União Soviética e no mundo. Um dos personagens de "O Mestre e Margarida" diz, em algum momento: "Manuscritos não ardem". Pois os manuscritos de Bulgákov não arderam nas fogueiras das inquisições stalinistas mas ardem em chamas no coração ao serem lidos. Excelente!

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Redneck, em inglês, define um homem rude (e nude), grosseiro. Às vezes, posso ser bem bronco. Mas, na maior parte do tempo, sou doce, sensível e rio de tudo, inclusive de mim mesmo. (Redneck is an English expression meaning rude, brute - and nude - man. Those who knows me know that sometimes can be very stupid. But most times, I'm sweet, sensitive and always laugh at everything, including myself.)

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