Meu rugido dominical
"O órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo da natureza. Não é um ônus, um peso, um estorvo, menos ainda uma reprimenda dos deuses", afirmou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto, ao votar a favor da união estável gay. Ou os deuses da Justiça enlouqueceram e o ministro, jocosa e ludicamente (e talvez ao pensar no próprio prazer) se animou ao votar, ou, finalmente, alguém entendeu que gay é um conceito que extrapola o sexo e significa alegria em todos os âmbitos, afetivos ou carnais, que seja. O fato é que o STF, do Poder Judiciário, fez o que o excelso Congresso Nacional, do Poder Legislativo, não teve coragem: tirou do armário a união estável gay e, com isso, abriu portas, armários, janelas e um País inteiro para uma parcela da população que, até então, tinha 112 direitos a menos do que os casais dito normais, os heterossexuais.
Em julgamento histórico, o STF reconheceu, no dia 5 de maio de 2011, por unanimidade (10 votos a favor e uma abstenção), que a união estável entre pessoas do mesmo sexo é válida. Agora, casais gays (homem-homem ou mulher-mulher) passam a ser considerados, pela lei, como uma unidade familiar semelhante a qualquer outra no Brasil. Essa decisão tem o que, no direito brasileiro, chama-se "efeito vinculante", o que significa, na prática, que os demais tribunais estaduais devem adotá-la em julgamentos similares em todas as 27 unidades da federação.
Entre esses direitos estendidos aos gays, estão a comunhão de bens, a pensão alimentícia, pensão do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que garante o direito à aposentadoria, planos de saúde e herança. No entanto, isso não funciona de forma automática. Como todos esses processos envolvem a Justiça, os casais gays, assim como os heterossexuais, terão que ir aos tribunais para fazer valer seus direitos. Particularmente, conheço um casal gay que está junto há mais de 50 anos e que, na iminência da morte, se precaveu, antes dessa lei, por meio de testamento, para garantir ao que continuar vivo direito ao patrimônio construído durante todo esse tempo. Também sei que as famílias de ambos, que desaprovam a união, já sobrevoam a potencial herança feito abutres. É contra esse tipo de atitude, sobretudo, que a nova lei agirá.
"Por que o homossexual não pode constituir uma família? Por força de duas questões abominadas pela Constituição: a intolerância e o preconceito", afirmou outro ministro do STF, Luiz Fux. Da forma como se espera de um ministro da mais alta corte judiciária do País, Fux disse que a homossexualidade é um traço da personalidade. Logo, caracteriza a humanidade de determinadas pessoas, completou. Apropriadamente, o ministro criticou o Congresso Nacional: "O reconhecimento da união homoafetiva é uma travessia que o legislador não quis fazer, mas que esta Suprema Corte sinalizou que fará". Como fez, afinal. No Congresso, projetos sobre a união gay ou mesmo o casamento gay (que ainda continua em suspenso) são debatidos desde 1995 sem qualquer resultado. Ou seja, o STF deixou no chinelo o Congresso, que engatinha sobre o tema há 16 anos.
É claro que há muito a ser comemorado com a decisão do STF. É um avanço sem precedentes no Brasil, País cujo legado judaico-cristão, que não pratica o laicismo, e cuja democracia se estende, no máximo, até o ponto em que fica proibido que namorados gays se beijem (seja na rua ou na TV) ou que as pessoas usem uma kilt ao seu bel-prazer. Quer dizer, democracia, a fundo, em que o indivíduo não é tolhido nos seus direitos institucionais, não existe, de fato.
Mas, ainda há um imenso caminho a ser percorrido, do qual o mais extenso, na minha opinião, é o preconceito. De nada adianta estabelecer no papel o que pode ou não quando minha família, amigos, vizinhos e estranhos me considerarem "diferente". E diferente na acepção triste, não na que distingue as pessoas e as torna tão plurais.
Ao mesmo tempo em que mentes abertas às atuais demandas da sociedade votaram a favor da união estável gay, cabeças obscurantistas e barrocas, relacionadas, claro, às vertentes religiosas, igreja católica à frente, refutaram a aprovação: "Polígamos, incestuosos, alegrai-vos, eis aí uma excelente oportunidade para vocês", indignou-se o excelentíssimo advogado da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Hugo José Cysneiros. A CNBB é porta-voz oficial da Igreja Católica no País. Engraçado que a CNBB pense logo nesses termos, dado que conheço mais de um padre gay, que adora festinhas, drogas e algum rock'n'roll.
Os próximos passos, certamente, ainda são polêmicos. O casamento gay, em si, não foi aprovado. A Constituição, ipsis literis, reconhece a união estável entre o homem e a mulher. O que implica que a equiparação do casamento gay não é tão simples e deve demandar debate na Justiça.
Outro ponto polêmico, para as cabeças obscuras, convictas (!) de sua sexualidade, é a adoção por casais gays, também não encampada pela atual aprovação.
De qualquer forma, esse é um pequeno passo para a sociedade e um grande salto para a comunidade gay, afirmo, em alusão à caminhada lunar. O Censo revelou, no final de abril, que 60.002 brasileiros afirmaram morar com cônjuges do mesmo sexo, o que corresponde a 0,03% da população total do País. Ou seja, três pessoas a cada grupo de 10 mil outras afirmam ter uma união estável gay constituída na prática. De imediato, a aprovação da união gay estável pelo STF dá a esse grupo os 112 direitos antes reservados apenas aos casais heterossexuais.
No mínimo, o Brasil se alinha, agora, a quase 30 países do mundo que reconhecem a união estável entre pessoas do mesmo sexo para efeitos de herança e outros direitos legais. De qualquer forma, se o Brasil está atrasado, com o debate que tramita no Congresso Nacional desde 1995, o mundo, na comparação, não é tão diferente assim: foi apenas em 2001, há dez anos, que a Holanda tornou-se o primeiro país do mundo a permitir o casamento entre gays.
Até agora, no entanto, pouco menos de uma dezena de país permite esse tipo de união. Nos demais, o "casamento" gay varia entre união civil integral (caso do Brasil, com essa nova legislação) e união civil parcial. A maior parte do mundo, entretanto, permanece refratária à questão. Se quase 30 países avançaram, outros quase 30 ainda consideram o homossexualismo crime, passível de prisão. E quase outra dezena está na Idade Média: homossexuais, nesses países, sobretudo na África e Oriente Médio, são condenados à pena de morte.
Há muito a se caminhar nesse mundo, enfim.
2 Comentários:
estranha em mim...
às vezes tbem sinto-me assim,
pelo avesso...
se pudesse,
se tivesse uma segunda vida,
uma segunda pele,
uma segunda vida na primeira,
a primeira etrnidade...seria bom.
super abraço
Oi Nina, que lindo isso. Obrigado pelo carinho. Abração!
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