Terreiro ou terroir?
Algumas pessoas nasceram no terroir. Já falei muito sobre o terroir aqui no blog. Conceitualmente, terroir (do francês terroir e do latim terratorium) significava, originalmente, uma extensão limitada de terra conforme as qualidades que dava à agricultura, principalmente quanto à produção vitícola (videiras, uvas).
(Foie gras)
Em gastronomia, o termo terroir é mais abrangente e abarca tudo: vinho, azeite, alimentos, peixes, caça, queijos etc. Assim, o melhor terroir do foie gras é francês, da região de Aquitanes e Midi-Pyrénées (sudeste da França); o melhor vinho é de Borgonha, também na França; o melhor azeite é da Espanha; os melhores currys são da Índia; os melhores peixes, do Japão. São produtos que, conforme o desenvolvimento de cada país ou região, obtiveram certificados de controle de origem, de território, de qualidade, frescor e outras tantas características que os tornam únicos.Mas, e quando não há terroir? Suponho que, nesse caso, há terreiro. Sim, terreiro, quintal, puxadinho, roça. É o caso do Brasil, por exemplo, que detém, na minha opinião, o terreiro de mandioca e da cana-de-açúcar que gera a cachaça, a pinga, a branquinha, a malvada. Ou isso não conta? Claro que sim!
Somos, o Brasil, um imenso terreirão: descem santos e santos no formato dos mais diversos produtos animais e vegetais. Somos uma profusão de sabores, cores, cheiros. Temos frutas que, dizem, vieram direto do Éden para cá: graviola, cupuaçu, cajá, bacuri, mangaba, jenipapo, jambo, pitomba. Leia os nomes. São poéticos. Terreiro ou terroir?
(Especificações do terroir francês)
Não importa. Sabemos que os índios cultivavam ali, ao lado da oca, o alimento de subsistência. O milho, a mandioca, o milho de pipoca. Quer alimento mais nacional que a pipoca? E a paçoca de amendoim? O pé-de-moleque? Observe, de novo, os nomes. Pululam na boca, só de pronunciá-los. Que terroir, que nada! Terreiro sim.
Terreiro de macumba, de candomblé, de umbanda. Terreiros de festa. Quem não tem, no interior, um terreirinho coalhado de plantas? Cheiro-verde, alguma pimenta, um pé de erva-doce, outro de capim santo. Eu tenho dentro de casa um pé de pimenta malagueta. É o meu próprio terreirinho. Já cultivei salsa, cebolinha e coentro no meu apartamento.
(Hortinha de apartamento)
Se terroir é o modo como principalmente os franceses encontraram para enobrecer os vinhos, queijos e carnes, por que não nos apropriarmos do terreiro como extensão de nossas cozinhas? Por que não resgatar o terreiro da roça que tantos de nós temos registrados na memória rural. A gastronomia brasileira é refratária, ainda, ao culto dos produtos locais (terreiroir, posso assim definir). E quem disse que o jiló não merece o certificado de Identificação Geográfica Protegida (o IGP francês)? Será que o jiló de Minas Gerais não é o melhor jiló do Brasil? Ou será o do Rio de Janeiro?
(Jiló)
O hábito, que vem dos índios, de encontrar farta disponibilidade de frutas, legumes, hortaliças e outros alimentos diretamente da natureza, fez com que nunca valorizássemos a origem de cada ingrediente. Outro dia, assisti a um filme indiano em que havia uma profusão de cores nos mercadinhos mais interioranos. Eram os currys. O curry é tão abrangente na vida dos indianos que cada família carrega consigo a própria receita de curry. É tão bonito isso.
(Curry)
A cada conversa com os colegas de gastronomia, encontro referências aos terreiroirs de cada um: um porco que era abatido no quintal (logo, terreiro), em torno do qual havia uma verdadeira festa; um pão assado no forno de barro, coberto por folhas de bananeira; uma abóbora colhida na roça que se transformava em um exuberante doce de abóbora com coco, ralado na hora. São lembranças que remetem, de imediato, ao terreiroir.
O feijão da mãe, da avó. O alho picadinho conservado no sal. O arroz que era colhido e debulhado em máquinas e voltava, branquinho, para o consumo doméstico. A banha de porco que era mais saudável que os óleos vegetais. O torresmo. O queijo feita por nossas avós. A pamonha. O cural. Alguém ainda duvida que não há terroir no Brasil?
Algumas pessoas nasceram no terroir. Outras, no terreiro. O que fazer com a terra e dos alimentos dela provenientes depende apenas da memória e do gesto. Decreto, desde já, a criação do Manifesto Terreiroir! Pela apreciação e respeito pelos produtos da terra brasilis. Já!
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