Rastreio de Cozinha - 134
Sem a proteção do telhado e com o chão ausente, eis que vimo-nos, subitamente, na condição simultânea de sem-teto e sem-terra. Não me tomem por leviano que não quero zombar de ninguém.
Mas, é assim que estamos, metralhados que fomos por uma armada empedernida que só fez trovejar palavras de ordem, progresso e disciplina, numa inscrição positivista que a nós não nos faz nada positivos. Ao contrário, centelhas, às centenas, de pequenas brasas negativas nos chamuscaram e torraram nossos escassos cérebros.
Mais não faltasse, um rigor absolutista de senhores feudais não permitem flexibilização no establishment. A nós outros, restam poucas alternativas e nenhuma se apresenta animadora.
Logo, de supetão e impulsionado pelo susto, quando dei por mim, percebi que deveria sair do mundo. Desligar as tomadas. Fechar a porta a chave. No ombro, uma mochila de viajante. Quando muito, a música móvel. Não mais que isso.
Despido dos escassos bens materiais que me atrelam a um presente do qual não se vê o futuro e a um passado que, por desgastado, não abona atitudes proficientes, ponho-me a caminho. Menino a caminho. Sim, porque meninos não pensam e nem avaliam. Simplesmente seguem os instintos. E, a caminhar, me livro da cidade, das ruas, tomo uma estrada, sigo sem bússola. Já estou fora dos grandes centros. Quero me livrar dos centros, do humano.
Conforme me afasto, o silêncio aumenta e, dentro de mim, se enche o silêncio. Sem reflexões. Apenas o vazio do silêncio, imensa via-láctea estelar. Apenas um ruído de um jato que passa. O jato sou eu mesmo que corto a barreira do som. Depois da barreira, não há mais som. Apenas uma gelatina espessa, um farfalhar de poeira.
Atinjo um ponto em que horizonte e céu intercambiam-se, negros ambos, e já não os diferencio. Retorno ao primitivismo, ao escuro dos tempos imemoriais. Silêncio. Me converto no ambiente, faço uma metamorfose que ambula e perambula. Realizo a fotossíntese com a terra, com o ar, a água e o fogo. Sou quatro elementos. Sou elementar, meu caro.
Essa viagem não é vã filosofia. É todo o pensamento que me ocorreu depois de ser bombardeado feito cidade inglesa na Segunda Guerra. A um só tempo, bombardearam-nos, aos colegas e a mim, com prazos, inúmeros números e textos e declararam que estamos em operação padrão, vulgarmente denominada por uma sigla que, em si, assemelha-se, foneticamente, àquela organização criminosa que parou a cidade que não para. Refiro-me ao TCC, obviamente.
Depois de duas semanas de provas e de uma Semana de Gastronomia com sabor de estafa e o amargor de um vinho barato, eis que nos jogam, nos atiram mesmo, nos rios infectos do TCC. Prazos? Semana que vem! Volumes? Muitos! Dúvidas? Nenhuma, claro, pois não!
Que fazer? Que não fazer? Chorar, rir ou duvidar? Melhor sonhar acordado. E antes cair das nuvens do que do terceiro andar. Quanto às convenções, que fiquem declaradas em estatutos. Por enquanto, prefiro viajar, senão no tempo atemporal, ao menos nas palavras que me acolhem.
P.S. Só para constar e não parecer o que é, efetivamente (um meio-estado de loucura e surto), tivemos aulas nesta quarta-feira. De Planejamento e Organização (Manual de Boas Práticas, POPs, compras, estoque, controle disso e daquilo) e de Gestão Financeira (Custos), acrescida, certamente, de dez novos cálculos que prometem desbastar as mais vastas cabeleiras somente pelo fato de existirem. Em resumo: sim, as tive, as aulas. E não! Não surtei. Surtaram-me!
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