Meu rugido dominical
Quando constatamos que somos edifícios em decadência? E se o somos mesmo? Quando começamos a ser desabitados, abandonados, a transformar-nos em ruínas? Se diz do corpo várias coisas: uma catedral, um templo, uma casa ou fortaleza.
São sempre definições positivas, vastas, que nos asseguram, aos nossos corpos, construções que sobreviverão às intempéries, aos abalos sísmicos, alicerçados que estão sobre vigas enraizadas, presas ao solo por concreto e pedra.
Mas, e quando o castelo que somos se decompõe feito aqueles projetos imaginários que supomos castelos de areia? Que arquitetura é sólida o suficiente para que nenhum abalo ponha abaixo as estruturas tão bem construídas e reelaboradas ao longo de toda uma vida?
O corpo é um trabalho em progresso que tem início, meio, auge e decadência. Dado que a idade média em que vivemos está entre a faixa de 75-80 anos, contamos aí com, pelo menos, quatro fases de construção: do marco zero aos 17,18, crises, confusões, descobertas, negações, aceitações. Um torvelinho que nunca se resolve em si mesmo e, geralmente, rodopia até que o próprio rio decida por um destino. Ao sabor da correnteza, feito um tronco de madeira que bóia até achar uma margem.
Às vezes, isso funciona. Ficamos parados e vemos o rio passar. Passa tudo no rio e apenas assistimos. Espectadores que não interagem. Se, e quando o fazem, talvez que possam seguir com a caravana. No mais das vezes, apenas tocamos aqueles "aventureiros" que ousam seguir adiante.
Dos 18 aos 31, 32 anos é a glória. O auge. Pode-se tudo, não há limites. A vida não finda. Um mundo a ser salvo. Nada de salve-te a ti mesmo. Não há tempo para crises. Apenas para gerar crises. O corpo submete-se: portas batidas, janelas escancaradas, acorda-se e adormece-se sob a ação dos cataclismas e tudo parece renovável. A energia é de alta combustão e não há perspectiva de desabastecimento. O mundo desaba lá fora e o edifício permanece, impávido.
Não somos, nessa fase, coadjuvantes. Nada disso. Somos, todos, ilusoriamente, protagonistas, fachadas, e não área dos fundos. Damos o melhor e o pior. Apenas escondemos o lixo na área de dejetos possíveis. Vive-se como se não houvesse amanhã e quando o amanhã chega, estiram-se os braços para o amanhã do amanhã, numa sucessão de dias que não se contam.
Depois dos 33, idade mitológica pisada e repisada pelo cristianismo, parece que um mar Vermelho separa dois mundos. Temos que decidir. Se atravessamos o mar ou por ele seremos engolidos. Se seremos parte do mundo ou viveremos de forma alternativa, em universos paralelos claros apenas para nós mesmos. Ficamos entre a idade da razão e a emoção que lateja, sôfrega e latente.
A solidez da construção já vibra com ventos fortes e, que pena!, teme pelos alicerces que poderiam ter usado material de primeira qualidade. Será que não se podia ter investido na qualidade? Será que fizemos o certo? E quando foi que decidimos que o concreto A era o certo, ao invés do concreto X? As dúvidas se somam às pequenas decomposições. Por vezes, vemos ou imaginamos pequenas chuvas de areia que caem do teto. Apavorados instantaneamente, logo nos esquecemos dos primeiros sinais. E tentamos, com algum esforço, acrescido de degraus cada vez mais altos, superar algumas falhas com reformas, remendos e, de vez em quando, fugas para casas mais sólidas.
Aos 41, definitivamente, o edifício mudou. As paredes, que não vêem uma demão de tinta há décadas, riem desdentadas. Feias e sujas. Quaisquer acréscimos ao antigo templo soam falsos. Os objetos brigam entre si, não há mais harmonia. O feng shui elaborado não passa de uma sombra de falsas coordenadas. Um desequilíbrio visível toma conta da construção. Buscam-se salvaguardas. Quem sabe a cromologia resolve! Talvez uma guinada radical! Pôr abaixo o velho e fazer nascer o novo. Fênix que resolve-se de dentro para fora.
Mas, a linha do tempo é cruel. Os ponteiros avançam rapidamente. Um ano, três, uma década. O prédio esgueira-se por entre prédios mais recentes. Tenta respirar ante tanto novo, sempre o novo a encobrir o velho. Perde-se por corredores e, constrangido, fecha as portas à chave e pesadas correntes. Tem medo de invasões. De invadir. De ousar.
Uma consulta a um arquiteto renomado e moderninho determina o diagnóstico: risco de ruir, necessidade imediata de grandes intervenções na estrutura central. Há que se desenhar uma nova planta, colocar abaixo o velho caramanchão e fazer surgir não o novo, mas uma readaptação. Fase temerosa essa. Reaprender. E, ao fazê-lo, sorrir como se não doessem as pernas a cada passo. Como se o coração não batesse mais forte, falto de fôlego.
Minha casa caiu, dizemos. Para nos anunciar a nova, temos que dizê-lo em voz alta. Para acreditar que, de fato, não há casa eterna. Que a pele fica frágil, perde elasticidade. Perdemos o vigor e o viço. Somos cansaço, mais dor do que amor. O amor vem quando dá, quando vem. Mais de relance do que de fato. A casa precisa cada vez mais de reparos. E desperdiça-se tempo e energia com essas coisas bobas de amor. Ai, cansei! A quarta fase - de assimilação da ruína - fica para a próxima década. Que a minha própria arquitetura da destruição também tem limites, OK?
Seja o primeiro a comentar
Postar um comentário