Rastreio de Cozinha - 112
Servidão ou serviço? Servidão significa muita coisa: submissão, subordinação, subjugação, sujeição, servilismo, subserviência. Como derivados, a adulação, a obediência, a bajulação e até mesmo o puxa-saquismo. Serviço é o ato de servir, desempenhar um trabalho, obséquio, favor. Percebe que a distância entre as definições é grande?
Para nós, em gastronomia, servir significa prestar um serviço, servir o outro. Não significa, entretanto, ser servil, servir na condição de servo ou escravo.
Na aula de Sala e Bar desta segunda-feira, tivemos vários exemplos sobre a hospitalidade de um serviço de comida (restaurante) e todas as derivações que partem daí. A principal, comum em São Paulo e, imagino, em todos os grandes centros, é aquela que situa o "serviçal" de restaurante como um sujeito qualquer. O garçom é um reles empregado que está ali para agradar o cliente, independentemente de qualquer atitude desse cliente.
Não é invenção: as pessoas tratam os garçons como se esses fossem, de verdade, um servo. Que está ali apenas para satisfazer as vontades do amo, digo, suserano. O vassalo, servil, terá apenas que ficar atento aos gestos do suserano e ser eficiente da melhor forma possível.
O professor nos contou sobre uma ocorrência em seu restaurante (famoso em São Paulo; não vou citar o nome): o cliente jantou, pagou a conta e foi embora. Meia hora depois, voltou, nervoso, gritou com o caixa e agrediu fisicamente o empregado porque disse que havia sido cobrado em R$ 500 a mais em sua conta. Houve um tom racista por parte do cliente (que se referiu ao caixa e demais funcionários como "esses nordestinos"); um outro cliente, irritado, se intrometeu e a briga acabou por envolver todo o restaurante.
O caixa, enquanto a briga acontecia, investigou junto à operadora de cartão de crédito e descobriu que o cliente havia almoçado em uma churrascaria naquele mesmo dia e que, provavelmente, seu cartão havia sido clonado naquele outro estabelecimento.
Depois de acalmados os ânimos, o cliente foi alertado sobre a ocorrência: disse que estava envergonhado e que não voltaria ao restaurante mais (era um cliente antigo). Mas, em nenhum momento, pediu desculpas pela atitude hostil e, definitivamente, preconceituosa.
Destratou garçons e caixa porque enxerga nesses "servidores", talvez, servos que devem obedecer suas ordens sem retrucar. Não se deu ao trabalho de se desculpar posto que, como suserano, não pode se rebaixar ao nível dos servidores vassalos.
Essa é uma realidade comum nos restaurantes de São Paulo. Deve ser frequente em outras cidades também, mas, particularmente, eu conheço o serviço daqui e, portanto, tenho condições de avaliá-lo.
Muitas vezes presenciei amigos que destratam o garçom porque houve algum equívoco. Nessas situações, em geral, basta conversar. Mas, alguns se exasperam e partem do princípio de que o garçom comete o erro de propósito. E aí você compreende o quanto o preconceito com o "servidor", em geral, está arraigado.
A nossa profissão, na gastronomia, lida com o contexto da prestação de serviço, da satisfação do cliente e da hospitalidade. Mas, partir daí para cristalizar a expressão "o cliente sempre tem razão" é um erro crasso. Ninguém que me trata sob um pressuposto de superioridade tem razão. Seja meu chefe, meu editor, o proprietário da empresa em que trabalho ou qualquer outra pessoa.
A despeito da vassalagem ter sido extinta com o fim do feudalismo, no entanto, há muito suserano que conserva o feudo e faz disso um padrão para todo tipo de serviço que o cerca: restaurantes, estacionamentos, lojas, supermercados. É extensa a lista de serviços e locais aos quais o suserano insiste em submeter sob suas garras.
Ser dependente e obediente significa, em muitos casos, estar submetido a uma situação financeira, emocional ou ambas. Mas, a dependência e a obediência não estão atreladas à subalternidade, à subjugação, ao domínio do outro, por mais que o outro se veja como superior, suserano ou "dono" da situação, do dinheiro, do local ou de qualquer outra referência que o legitime como "proprietário".
Vassalo era o status legal e econômico legado aos camponeses (servos) no feudalismo, no qual se submetiam/subserviam ao suserano/senhor/dono do feudo. O vassalo era a classe social mais baixa no feudalismo. A única distinção entre esses servos e os escravos era que os primeiros não eram propriedade do senhor feudal e não podiam ser vendidos separadamente. Você notou? "Separadamente". Porque, se o feudo fosse vendido, o suserano tinha o direito de vender os vassalos juntamente com a terra.
A servidão se espalhou pela Europa do século X até a Idade Média (século XV). Em alguns, países, vigorou até o século XIX. Em outros, como o Brasil, ainda está em vigor (basta ver o tratamento dado aos servidores de restaurantes e a milhares de trabalhadores de cana-de-açúcar logo ali, no interior de São Paulo).
Em gastronomia, servimos. Porém, não somos, em instância alguma, servos. Prestamos serviços, pelos quais somos pagos, assim como o executivo é pago para gerir projetos ou prestar qualquer outro tipo de atividade em seu serviço. Portanto, não somos servos.
A servidão, imaginada há mais de mil anos como uma estrutura social, chegou a nossos dias como castas, com divisões bem estabelecidas de classes. A casta é um sistema social que persiste na Índia, de forma endêmica. Mas, o que não se debate é que a casta sobrevive em praticamente todo o planeta por meio de definições como servente, serventia, serviçais, servidão, servidor, serviente, servil, servilismo.
Se, numa cidade como São Paulo, em 2008, esse sistema de casta permanece aferroado aos antigos ideais medievais, o que dizer de pessoas como meus colegas, professores e eu que fazemos uma faculdade e, portanto, em termos de formação acadêmica, somos exatamente equivalentes a jornalistas, advogados, médicos, arquitetos, publicitários e qualquer outra profissão formal? Somos universitários-servos?
Da próxima vez que você for a um restaurante e observar a relação suserano-vassalo, reserve-se o direito de aquiescer ou, pelo bem de uma categoria inteira, de revoltar-se com isso. É feio, é pobre, é um estereótipo eternizado pela ação de pessoas limitadas. Eu tenho vergonha de ser um prestador de serviço e de me calar diante da humilhação. Meu nome, em latim, significa "servo, pastor, aquele que cuida, que protege". Espero, realmente, que o servo do meu nome tenha a ver apenas com a origem campesina, de pastor e protetor de ovelhas que passam o dia a balir ingenuamente. Porque estou longe de ser um ser servil.
9 Comentários:
e o seu nome é?...
Huuumm ... Por enquanto, é só Redneck mesmo. Curioso!
é. nisso a fama é inferior ao proveito... quer dizer, proveito proveito... só mesmo às vezes a curiosidade, sem consequências ao nível do que pretendo saber...
é. nisso a fama é inferior ao proveito... quer dizer, proveito proveito... só mesmo às vezes a curiosidade, sem consequências ao nível do que pretendo saber...
mas deve ser essa a beleza do desejo, inclusive da ciência.
Ai que não entendi nada do que você disse. Proveito, fama, beleza, desejo. Homem, o que é tudo isso? é para me confundir em definitivo e me tornar de vez um vassalo sob a suserania de sua opinião inatingível? Luz, please.
Caro red, ao contrário do que pensa, sou adepto de "tirar satisfação", ou seja, gosto pouco de opiniões inatingíveis, secretismos e obscuros intentos. O meu raciocínio é simples: disse que, tendo fama de curioso, sou "bem mais" curioso ainda, na medida não da "fofoca" (que "matou o gato") mas do querer saber, perceber, compreender ("ciência"). A beleza disso ("desejo" de compreender)é que o proveito nunca é proporcional - tudo perceber não é possível, porém, mantém-nos despertos, atentos, humildes, humanos, buscando respostas. Por tal jamais serei servil ante o desconhecido, menos ainda sob o escondido, disfarçante. farsante. as minha opiniões, primeiras ou "segundas", reformuladas, são sempre reais. esclarecido?
Ok, esclarecido. Mas, por favor, não me jogue o manto do escondido, disfarçante e farsante porque não é por me manter sob o anonimato de um nickname que deixo de ser legítimo. Abraço!
legitimado, pois, sede!...
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