Meu rugido dominical
Hoje, 25, não chegou a fazer um mês desde que começaram a recapear a minha rua, a Alameda Joaquim Eugênio de Lima. Para quem não conhece (ou até para quem conhece) a cidade de São Paulo, a alameda é uma das mais importantes e movimentadas conexões entre as zonas central e sul da capital paulista. Quando saio de manhã, o trânsito já está congestionado em frente de casa. Ao voltar, mais de 12 horas depois, ainda permanece congestionado e assim fica quase até a meia-noite quando, finalmente, a cidade meio que respira aliviada por mais um dia. Ou menos um.
Bem, o recapeamento ainda não acabou. Fizeram muito barulho por nada, eu diria, se Shakespeare fosse. Como não é o caso, digo que fizeram muito barulho por pouco ou quase nada. Ainda falta derramar sobre o asfalto cru aquele creme cinzento, o piche. E, depois, fazer a sinalização para que a via retome cara de rua.
Mesmo assim, parece um tapete ante a peneira que era antes. E, não decorridos os tais 30 dias, eis que neste mesmo domingo, 25, a poucos metros (uns 20, no máximo) do meu prédio, onde há um outro monstro-prédio em construção, chegaram os homens do domingo e se puseram a cavar e esburacar a rua recém-asfaltada com tratores, caminhões e britadeiras que, juntos, fizeram da tarde de domingo um ruído de bateria de guerra equivalente ao que os soldados norte-americanos do seriado "The Pacific" fazem com os soldados japoneses quando ambas as linhas se defrontam.
Em questão de horas - e foram longas, essas horas - deixaram no asfalto outrora reto dois vermes. Sim, parecem dois vermes que cavaram areia do deserto e deixaram atrás de si a inconfundível marca de seus corpos. Duas valas, prontas para receber cadáveres. Meio tétrico mas descreve à perfeição o que ocorre com esta querida e complicada cidade.
Não consigo entender embora tente porque cargas de ferro, de água ou de qualquer outra coisa, não existe uma sincronia de movimentos entre poderes público e privado. Veja: se vão (os privados) perfurar uma via, por que não entrar em acordo antes com os 'arrumadores' (os públicos) dessas tortuosas vias que cortam, recortam e nos fazem perder-nos em suas curvas a todo momento?
A primeira coisa a se criticar é a total falta de educação das construtoras privadas que insistem em trabalhar aos domingos, feriados e depois da meia-noite e interromper os breves momentos de silêncio a que todos temos direito. Embora eu não concorde com os métodos da minha vizinha do andar acima, que se pôs a crocitar feito gralha com os homens porque eles atrapalhavam seu mavioso sono às 14 horas (e ainda que a gralha em questão não se intimida em chegar às 5 da manhã e fazer o prédio inteiro tomar conhecimento da sua penosa e fosforescente chegada), devo concordar quando ela reclama de um direito elementar: o de termos, ao menos, os domingos livres de barulho de obras e construções que, certamente, passam por sistemas de corrupção.
Não fosse assim, se existe a tal lei do silêncio que nos obriga, pessoas físicas, a nos calarmos em vias públicas após as 22 horas, creio que essas empresas privadas jamais se atreveriam a inundar nossas casas com seus dentes de britadeiras. Tenho certeza que entre o poder público e o privado dessa cidade corre um rio inteiro de dinheiro, drenado, entre outras coisas, pelas valas que se abrem a todo instante nas ruas, alamedas, vias, avenidas e vielas desta São Paulo mais sinuosa do que os rios do Amazonas.
A segunda crítica diz respeito a essa falta de entrosamento entre as empresas privadas (todas as que interferem em vias públicas, notadamente as construtoras) e públicas (que deveriam cuidar para que um aslfalto recém-colocado não fosse imediatamente arruinado para atender a um prédio). Pois mais informatizados que sejam sistemas públicos e privados, de novo, deve haver um imenso cipoal que faz de tudo para atrapalhar que A (público) encontre a agenda de B (privado) e um não atrapalhe o outro ou, no mínimo, ajudem-se mutuamente de forma a não acabar com a vida de C (nós outros, habitantes e teoricamente cidadãos).
Estou na lua com o descaso dessa péssima administração do horrível prefeito Kassab. Não o escolhi. Foi eleito por uma maioria da qual não faço parte. OK. Mas é essa maioria, e eu com ela, que sofremos esse vaivém que faz desta cidade uma tresloucada capital mundial imersa num caos que se avoluma mais e mais.
Em pouco mais de quatro anos, seremos uma das cidades-sede da Copa do Mundo. Tenho pavor de pensar pelo que passaremos até chegarmos lá. Tenho pavor de saber que os automóveis crescerão ainda mais em volume. Que as obras - profundas ou de perfumaria - serão incontáveis. Num verdadeiro escambo entre o mercado privado e o poder público, creio que teremos uma série de escavações e coberturas a se sucederem mal e porcamente para satisfazer a ganância de empresas e de administrações públicas corruptas. Quisera eu ter uma escavadeira moral para fazer estrilar nessas mentes criminosas o mesmo barulho ensurdecedor a que nos obrigam naquela que poderia ter sido uma afável tarde de domingo.
Como não o foi, a bela tarde, me fui eu em busca dessa placidez. Me retirei de casa e a ela retornei somente à noite para me livrar da:
- Gralha que, belle du jour, a esta hora (são quase 22 horas) se prepara para a revoada noturna, muito provavelmente;
- Britadeira que me corroía cérebro e me deixou com acessos de fúria;
- Cidade que, encerrada neste pequeno universo da minha rua, foi a conjunção de moradores estressados em embate com máquinas superdimensionadas.
Escrito isso, vou assistir "The Pacific" para me pacificar.