Mise en place ou mise en scène?
Mise en place é, em gastronomia, a etapa na qual se separam os utensílios e ingredientes que se usarão para preparar uma produção (ou prato). Os ingredientes são descascados, cortados e reservados para o uso futuro da produção. Mise en scène é, no teatro, a expressão que descreve os aspectos de desenho de uma produção.
Em comum, os dois conceitos, além de virem do francês, têm o mesmo objetivo final: a produção (de um prato, no caso do primeiro, e de uma peça, no caso do segundo). No backstage (ou bastidor), no entanto, tanto a produção do prato quanto da peça ocultam a parte, digamos, sem glamour da cozinha e do teatro. A cozinha é um lugar quente, com cheiros fortes, pessoas irritadiças, nervosas e ansiosas ao extremo porque lidam com o tempo. No teatro, as coxias são quase que valas de guerra por onde transitam outros tantos de pessoas nervosas, ansiosas e nada amistosas entre si.
Ao final, prato e peça estrearão e chegarão ao consumidor em dois diferentes patamares mas que, ainda no âmbito do denominador comum que os une, em plataformas quase equivalentes: na mesa e no palco. Esses dois tablados, na verdade, servem ao mesmo interesse: no caso da mesa, de apresentação do prato-assinatura-grife do chef da casa. No teatro, o palco sustentará a representação do autor, do diretor, dos camareiros, dos carpinteiros, eletricistas, serventes e todos aqueles que estão envolvidos para que apenas o ator ou a atriz brilhe. Ao final, ambos são, de alguma forma, egoístas e tiram a glória das mãos que os prepararam para o ato final. Ou seja, a mise en place ou mise en scène são apenas e tão-somente os cavaletes que sustentam a estrela final.
Estive a pensar sobre isso ao retornar agora há pouco de um evento que misturou palco e mesa. O mais prestigiado e badalado chef brasileiro, cujo restaurante D.O.M. recebeu, recentemente, a 18ª. classificação na lista da revista britânica "Restaurant", entre os 50 melhores do mundo, sucumbiu à produção (de novo, essa palavra) industrial da alimentação. A não menos conhecida marca Knorr, de caldos industrializados, que pertence à multinacional Unilever, conseguiu convencer Atala e mais uns dez chefs mundiais a autenticarem como legítimo um novo caldo lançado pela empresa.
Assisti ao lançamento do novo caldo (que recebeu o selo Minha Escolha) e, depois, uma pequena demonstração de Atala ao fogão (sobre o qual reclamou pelo fato de ter quatro bocas e ser muito doméstico). Atala bem que tentou nos convencer, aos presentes, mas a mim é que não me convenceu de que o novo caldo industrial é o mesmo que o caldo feito artesanalmente.
Fez um rápido caldo demi glace com os restos da asa de frango assada e adicionou um monte de ervas aromáticas (alecrim, tomilho e ervas amazônicas típicas) ao caldo e, por fim, colocou apenas uma pontinha de colher do novo caldo da Knorr nesse demi glace. Ao servir a asinha de frango acompanhada de ratatouille, se esqueceu (e foi, salvo engano, um ato falho, posto que era assistido por quase duas dúzias de pessoas atentas) de finalizar o prato com o caldo.
Claro que imediatamente lhe alertaram para o fato. Mas era tarde (time goes bye diria Madonna). O que ficou, na minha nem sempre generosa percepção, é que o chef-ator se rendeu mas meio envergonhado. Tornou-se garoto-propaganda de um caldo cujo processo industrial jamais lhe passará pelas portas do seu D.O.M. Não lhe perguntei isso mas ele tomou cuidado de separar o chef da pessoa Alex Atala. O caldo ficou restrito ao ambiente doméstico, assim ele nos disse, de alguma forma. No seu restaurante, ao que me consta, esse caldo não entra. De qualquer forma, Atala se rendeu à indústria e emprestará sua fama e face para o secular caldo inventado em 1838.
Não o critico, em absoluto, por querer auferir benefícios com a fama e nome que têm. É de seu direito e tenho visto com frequência chefs renomados (como Ferran Adrià) se valerem do mesmo princípio e lançarem azeites industriais com suas grifes. É que me ficou uma sensação de comida-espetáculo-indústria de massa que, no meu paladar, não me deixou um gosto muito bom. Sei lá, vai ver as pupilas gustativas tivessem sido afetadas pelo whisky 12 anos que eu tomei. Nesse sim eu aponho o selo de Minha Escolha.
Ao voltar para casa, sucedeu que folheei o jornal do dia, com atraso de umas 12 horas, e dei de cara (dei de olhos, talvez) com um artigo que se me encerra muito bem a noite e do qual reproduzo parte (originalmente, publicado pelo "New York Times" e reproduzido, no Brasil, pela Folha de S.Paulo):
"A comida não tem mais a ver apenas com sustento; é uma arte, um estilo de vida, uma oportunidade. E hoje é acompanhada de alta expectativa.
Os chefs, não mais atrás das portas fechadas da cozinha, são os curadores e artífices do espetáculo, e muitos deles têm mais do que apenas comida em seus pratos.
Os chefs estão capitalizando a teatralidade da experiência gastronômica. Grant Achatz, do Alinea, em Chicago, trata o Next, seu novo restaurante, como um teatro e venderá ingressos para a inauguração no próximo semestre. Os comensais pagarão adiantado em seu site, e os ingressos vão de US$ 45 a US$ 75 para uma refeição de cinco ou seis pratos.
'Você pode entrar, sentar-se, iniciar sua experiência e, quando terminar, apenas levantar-se e sair', disse Achatz." Ué! É teatro ou não?