Minha querida amiga Alessandra, que vive e trabalha em NY, é uma pessoa que some, desaparece, não emite sinais virtuais ou reais. Parece que atravessa a Central Station para um outro universo de vez em quando. Se, periodicamente, ela não visitasse o Brasil, eu diria que essa bruxinha está na escola de Hogwarts, como professora de magia. De vez em quando, no entanto, dá o ar de sua graça. Desta vez, em e-mail coletivo (marca registrada da criatura), nos enviou o discurso de abertura da cerimônia dos graduandos de Harvard.
Segundo a Ale, muitos alunos torceram o nariz quando descobriram que quem faria o discurso de abertura seria a autora J.K. Rowling (Joanne Kathleen Rowling), da saga de Harry Potter, o bruxinho mais famoso de todos os tempos.
O discurso, que reproduzo abaixo, é longo. Mas, se você tiver tempo, leia. Rowling fala do fracasso e do seu aprendizado na Anistia Internacional, onde trabalhou. Ale, não é que temos entre nós nossos próprios Comensais, não da morte, como diz a autora, mas, da vida?!
"Presidente Faust, membros da Corporação Harvard e da Câmara de Administradores, membros do corpo docente, pais orgulhosos e, acima de tudo, diplomados. A primeira coisa que eu gostaria de dizer é muito obrigado. Não apenas Harvard me deu uma honra extraordinária, mas, as semanas de medo e náusea que eu tenho experimentado em pensar de fazer esse discurso na cerimônia de formatura me fez perder peso. Uma situação com ganho das duas partes! Agora, tudo o que eu tenho a fazer é respirar fundo, dar uma olhada nas bandeiras vermelhas e enganar a mim mesma acreditando que estou na mais educada convenção Potter do mundo. Fazer um discurso de formatura é uma grande responsabilidade; ou assim eu pensava até voltar a minha mente para a minha própria formatura. O orador da cerimônia daquele dia foi a distinta filósofa britânica Baronesa Mary Warnock. Refletir em seu discurso me ajudou enormemente a escrever esse aqui, porque percebi que eu não conseguia lembrar de uma única palavra que ela disse. Essa descoberta libertadora me levou a prosseguir sem qualquer receio de que eu poderia influenciar vocês inadvertidamente a abandonar suas carreiras promissoras no negócio, justiça ou política para as delícias vertiginosas de se tornar um bruxo gay.
Estão vendo? Se tudo o que vocês se lembrarem nos próximos anos for a piada do “bruxo gay”, eu ainda saí à frente da Baronesa Warnock. Objetivos alcançáveis: o primeiro passo para o sucesso pessoal.
Na verdade, eu tenho movido minha mente e meu coração para o que eu deveria dizer hoje a vocês. Perguntei a mim mesma o que desejaria ter ficado sabendo em minha própria formatura, e quais lições importantes eu aprendi nos 21 anos que se passaram entre aquele dia e esse.
Surgiram-me duas respostas. Nesse dia maravilhoso, quando estamos todos reunidos para celebrar seu sucesso acadêmico, eu tomei a decisão de falar com vocês sobre os benefícios de um fracasso. E, como vocês estão no limite do que muitas vezes é chamado de ‘vida real’, eu quero exaltar a importância crucial da imaginação.
Essas podem parecer escolhas quixotescas ou paradoxais, mas, por favor, me ouçam.
Olhar para trás, aos meus 21 anos de idade que eu tinha na formatura, é uma experiência um pouco desconfortável para a de 42 anos na qual ela se tornou. Metade do tempo de minha vida, eu estava notavelmente com um equilíbrio preocupante entre a ambição que eu tinha para mim mesma, e o que aqueles mais próximos esperavam de mim.
Estava convencida de que a única coisa que eu queria fazer, sempre, era escrever romances. No entanto, meus pais, ambos os quais vieram de origens pobres e nenhum dos quais tinham ido à faculdade, tiveram a idéia de que a minha imaginação hiperativa era um loucura pessoal de divertimento e que nunca poderia pagar uma hipoteca, ou garantir uma pensão.
Eles tinham esperanças de que eu teria um grau vocacional; eu queria estudar Literatura Inglesa. Um compromisso que foi alcançado e que, em retrospectiva, não satisfez ninguém, e eu fui estudar Idiomas Modernos. Mal o carro dos meus pais dobrava a esquina no fim da rua e eu descartava Alemão e corria abaixo para os corredores de Clássicos.
Não me lembro de dizer aos meus pais que estava estudando Clássicos; eles podem muito bem ter descoberto pela primeira vez no dia da graduação. De todos os assuntos desse planeta, acho que eles dificilmente poderiam apontar um nome menos útil do que Mitologia Grega, quando isso veio para assegurar as chaves para um banheiro executivo.
Eu gostaria de deixar claro, entre parênteses, que não culpo meus pais pelo seu ponto de vista. Existe uma data de validade em culpar seus pais por colocá-lo na direção errada; o momento que você é velho suficiente para tomar a direção, a responsabilidade recai sobre você. Além disso, eu não posso criticar meus pais por esperarem que eu nunca experimentasse a pobreza. Eles tinham sido pobres, e eu já fui pobre, e concordo completamente com eles de que esta não é uma experiência que enobrece. A pobreza implica em medo, e estresse, e, algumas vezes, depressão; isso significa milhares de pequenas humilhações e dificuldades. Escalar para sair da pobreza por seus próprios esforços é de fato algo para se orgulhar, mas, a pobreza em si é romantizada apenas por tolos.
O que eu mais temia para mim na idade de vocês não era a pobreza, mas, o fracasso.
Na sua idade, apesar de uma clara falta de motivação na universidade, onde eu tinha gastado muito tempo escrevendo histórias em bares de café, e pouquíssimo tempo em palestras, eu tinha uma habilidade especial para passar em exames e que, por anos, tinha sido a medida de sucesso na minha vida e nas de meus colegas.
Não sou tola o suficiente para supor que, por serem jovens, talentosos e bem educados, vocês nunca tiveram dificuldades ou mágoas. O talento e a inteligência nunca vacinou ninguém contra o capricho do destino, e por nem um momento eu supus que todos aqui têm se beneficiado de uma existência de privilégios serenos e contentamento.
No entanto, o fato de vocês estarem se graduando em Harvard sugere que não estão muito bem familiarizados com o fracasso. Vocês poderão ser conduzidos por um receio de fracasso tão grande quanto um desejo pelo sucesso. De fato, sua concepção de fracasso pode não estar muito longe da idéia de sucesso de uma pessoa comum, tão alto que vocês já voaram academicamente.
No fim das contas, todos nós temos de decidir por nós mesmos aquilo que constitui o fracasso, mas, o mundo é bastante ávido para lhe dar um conjunto de critérios, se você deixá-lo. Por isso acho justo dizer que por qualquer medida convencional, meros sete anos após o dia da minha formatura, eu tinha fracassado em escala épica. Um casamento de excepcionalmente curta duração, e eu estava sem emprego, mãe solteira, e tão pobre quanto é possível ser na Grã-Bretanha moderna sem ser uma desalojada. Os receios que meus pais tinham tido para mim, e que eu tinha tido para mim, ambos tinham vindo para passar, e por cada padrão normal, eu era a maior fracassada que eu conhecia.
Agora, eu não vim para ficar aqui e lhes dizer que o insucesso é divertido. Esse período da minha vida foi bem obscuro, e eu não tinha idéia de que ia acontecer aquilo que a imprensa tem, desde então, descrito como uma espécie de fim de conto de fadas. Eu não tinha idéia do comprimento do túnel, e por muito tempo, qualquer luz em seu fim era mais uma esperança do que realidade.
Então, por que eu falo sobre os benefícios do fracasso? Simplesmente porque fracasso significa se despir do não-essencial. Eu parei de fingir a mim mesma que eu era qualquer outra que não eu, e comecei a orientar toda a minha energia em terminar o único trabalho que importava para mim. Se eu realmente tivesse alcançado sucesso em qualquer outra coisa, poderia nunca ter encontrado determinação para ter sucesso naquela área na qual eu verdadeiramente acreditava que pertencia. Eu estava em liberdade, porque o meu maior receio já tinha sido realizado, e ainda estava viva, e ainda tinha uma filha a quem adorava, e tinha uma velha máquina de escrever e uma grande idéia. O fundo de pedra do poço se tornou a base sólida sobre a qual reconstruí a minha vida.
Talvez vocês nunca falhem na escala que falhei, mas, alguns fracassos na vida são inevitáveis. É impossível viver sem falhar em algo, ao menos que você viva de forma tão cautelosa que você poderia não ter vivido de forma alguma - nesse caso, você falha por omissão.
O fracasso me deu uma segurança interna que eu nunca tinha atingido passando em exames. O fracasso me ensinou coisas sobre mim que eu não poderia ter aprendido de nenhuma outra forma. Descobri que tinha uma forte vontade e mais disciplina que suspeitava; também descobri que tinha amigos cujo valor estava realmente acima de rubis.
O conhecimento que você adquire sábia e fortemente a partir de uma derrota significa que você está, sempre depois, seguro em sua capacidade de sobreviver. Vocês nunca vão conhecer verdadeiramente a si mesmos, ou a força de seus relacionamentos, até que ambos tenham sido testados em adversidade. Esse conhecimento é um verdadeiro dom para todos os que venceram penosamente, e tem valido mais para mim do que qualquer qualificação que já ganhei.
Se me fosse dada uma máquina do tempo ou um Vira-Tempo, eu diria a mim aos 21 anos que a felicidade pessoal reside em saber que a vida não é uma lista de verificação de aquisições ou realizações. As suas qualificações, seu currículo, não são sua vida, embora você vá conhecer muitas pessoas da minha idade e mais velhas que confundem as duas coisas. A vida é difícil e complicada, e além do controle total de qualquer um, e a humildade de saber isso irá te capacitar a sobreviver às suas subidas e descidas.
Vocês poderiam pensar que escolhi meu segundo tema, a importância da imaginação, devido ao seu papel na reconstrução de minha vida, mas não é inteiramente por isso. Ainda que eu defenda o valor de contar histórias para dormir até meu último suspiro, tenho aprendido a valorizar a imaginação em um sentido muito mais amplo. A imaginação não é apenas a única capacidade humana para prever aquilo que não é, e, por conseguinte, a fonte de todas as invenções e inovações. Na sua argumentável mais transformadora e capacidade reveladora, é o poder que nos permite simpatizar com seres humanos cujas experiências nós nunca compartilhamos.
Uma das maiores experiências da minha vida precedeu Harry Potter, apesar dela entregar muito do que eu escrevi nesses livros em seguida. Essa revelação veio na forma de um dos meus primeiros empregos diurnos. Embora estivesse inclinada a escrever histórias durante minha hora de almoço, paguei o aluguel, nos meus vinte e poucos anos, trabalhando no departamento de investigação na sede da Anistia Internacional, em Londres.
Lá, em meu pequeno escritório, li cartas rabiscadas rapidamente contrabandeadas dos regimes totalitários por homens e mulheres que arriscam serem presos para informar ao mundo exterior do que estava acontecendo a eles. Eu vi fotografias daqueles que tinham desaparecido sem deixar rastro, enviadas à Anistia pelas suas famílias e amigos desesperados. Eu li os testemunhos das vítimas de tortura, descrições de testemunhas oculares dos julgamentos e execuções sumárias, de seqüestros e estupros.
Muitos dos meus colegas de trabalho eram ex-presos políticos, pessoas que tinham sido deslocadas de suas casas, ou fugiram para o exílio, porque eles tiveram a temeridade de pensar independente de seu governo. Os visitantes do nosso escritório incluíam aqueles que tinham vindo para dar informações, ou tentar e descobrir o que havia acontecido àqueles que eles tinham sido forçados a deixar para trás.
Nunca vou esquecer o africano vítima de tortura, um jovem não mais velho do que eu era naquela época, que tinha se tornado mentalmente doente depois de tudo que ele tinha sofrido em sua terra natal. Ele tremia incontroladamente enquanto falava para uma câmera de vídeo sobre a brutalidade exercida contra ele. Ele era alguns centímetros mais alto que eu, e parecia tão frágil quanto uma criança. Foi-me dada a tarefa de escoltá-lo à estação de metrô mais tarde, e esse homem cuja vida foi destroçada pela crueldade pegou a minha mão com sensível cortesia e me desejou um futuro de felicidade.
E, enquanto eu viver, vou lembrar de caminhar por um corredor vazio e, de repente, ouvir por detrás de uma porta fechada, um grito de pânico e horror como nunca ouvi antes. A porta se abriu, e a pesquisadora enfiou sua cabeça e me disse para correr e fazer uma bebida quente para o jovem homem sentado com ela. Ela tinha acabado de lhe dar a notícia de que, em retaliação por sua própria sinceridade contra o regime de seu país, sua mãe havia sido presa e executada.
Todos os dias da minha semana de trabalho no início dos 20 anos eu era lembrada do quão incrivelmente sortuda era por viver em um país com um governo democraticamente eleito, onde um representante legal e um julgamento público eram os direitos de todos.
Todos os dias, via mais provas sobre como os males da humanidade vão infligir sobre os seus companheiros, para obter ou manter o poder. Comecei a ter pesadelos, literalmente pesadelos, acerca de algumas das coisas que vi, ouvi e li.
E, ainda assim, aprendi mais sobre a bondade humana na Anistia Internacional que eu nunca havia sabido antes.
A Anistia mobiliza milhares de pessoas que nunca foram torturadas ou presas por suas crenças a agir em nome daqueles que já foram. O poder da empatia humana, que conduziu à ação coletiva, salva vidas e liberta prisioneiros. As pessoas comuns, cujo bem-estar pessoal e segurança estão assegurados, juntam-se a um grande número para salvar pessoas que eles não conhecem e nunca vão conhecer. Minha pequena participação nesse processo foi uma das experiências mais inspiradoras da minha vida.
Diferente de qualquer outra criatura nesse planeta, os seres humanos podem aprender e compreender sem terem experimentado. Eles podem pensar em si mesmos na mente de outras pessoas, se imaginar no lugar de outras pessoas.
Evidentemente, esse é um poder, como a minha marca de magia fictícia, que é moralmente neutro. Podemos usar a habilidade tanto para manipular, ou controlar, como simplesmente para compreender ou simpatizar.
E muitos preferem não exercer suas imaginações de forma alguma. Eles optam por permanecer confortavelmente dentro dos limites de sua própria experiência, nunca se preocupando em perguntar como seria ter nascido diferente do que são. Eles podem se recusar a ouvir os gritos ou espreitar dentro das grades; eles podem fechar suas mentes e corações para qualquer sofrimento que não os toque pessoalmente; eles podem se recusar a saber.
Eu poderia ser tentada a invejar pessoas que conseguem viver dessa maneira, exceto por achar que eles não tem menos pesadelos que eu. Escolher viver em espaços estreitos pode levar a uma forma de agorafobia (medo de lugares abertos), e que traz isso aos seus próprios pavores. Eu acho que o intencionalmente sem imaginação vê mais monstros. Muitas vezes eles têm mais medo.
Além disso, aqueles que optam por não se simpatizar podem ser os verdadeiros monstros. Sem nunca cometer um ato claro de maldade à gente, nós colaboramos com isso através da nossa própria apatia.
Uma das muitas coisas que aprendi no fim do corredor de Clássicos no qual me aventurei aos 18 anos, em busca de algo que eu não poderia definir, foi isso, escrito pelo autor grego Plutarco: O que nós alcançamos internamente mudará a realidade exterior.
Essa é uma afirmação surpreendente e ainda comprovada milhares de vezes todos os dias da nossa vida. Ela exprime, em parte, a nossa inadiável ligação com o mundo exterior, o fato de que nós tocamos as vidas de outras pessoas simplesmente por existirmos.
Mas, o quanto vocês estão, diplomados de 2008 de Harvard, provavelmente tocando as vidas de outras pessoas? Sua inteligência, sua capacidade para o trabalho duro, a educação que vocês ganharam e receberam, dão a vocês status e responsabilidades únicos. Até a sua nacionalidade os destaca. A grande maioria de vocês pertence à única superpotência remanescente do mundo. A maneira que você vota, a maneira que vive, a maneira que protesta, a pressão pela qual você passa para sustentar seu próprio governo, tem um impacto muito além de suas fronteiras. Esse é o seu privilégio e o seu fardo.
Se você escolher usar seu status e influência para levantar sua voz em nome daqueles que não têm voz; se você optar por se identificar não apenas com os poderosos, mas com a impotência; se você manter a capacidade de imaginar a si mesmo na vida daqueles que não têm as suas vantagens, então não vão ser apenas as suas orgulhosas famílias que vão celebrar a sua existência, mas milhares e milhões de pessoas cuja realidade você tem ajudado a transformar para melhor. Nós não precisamos de magia para mudar o mundo, nós já carregamos todo o poder que precisamos dentro de nós mesmos: nós temos o poder de imaginar melhor.
Estou quase terminando. Tenho uma última expectativa para vocês, que é algo que já tinha aos 21. Os amigos com quem me sentei no dia da formatura têm sido os meus amigos para a vida. Eles são os padrinhos dos meus filhos, as pessoas a quem eu tenho sido capaz de recorrer em momentos de dificuldades, os amigos que têm a gentileza de não me processar quando usei seus nomes para os Comensais da Morte. Na nossa formatura, fomos ligados por uma enorme afeição, pelas nossas experiências compartilhadas de um tempo que nunca poderia voltar e, é claro, pelo conhecimento que temos guardado em certas evidências fotográficas que seriam extremamente valiosas se alguns de nós concorresse a Primeiro-Ministro.
Portanto, hoje posso lhes desejar nada melhor do que amizades parecidas. E amanhã, mesmo se vocês não lembrarem uma única palavra minha, espero que se lembrem aquelas de Seneca, outro desses antigos romanos que conheci quando fugi para o corredor de Clássicos, em fuga de uma carreira promissora, em busca da antiga sabedoria:
Conforme um conto, assim é a vida: não o quão longa ela é, mas o quão boa, é o que importa.
Desejo a todos vidas muito boas.
Muito obrigado."