Rastreio de cozinha - 45
Cataluña. Talvez 1918, 1920. Tenho lembranças deste lugar que não são minhas. Outras, as tenho próprias. As não-memórias são orais, contadas lá em casa, pela minha mãe e avó. Minha bisavó veio da Espanha, quase que certamente da Cataluña. Era uma senhora sisuda (não a conheci sequer por foto), a avó Caetana. Se vestia de luto, o tempo todo. Com vestidos imensos, a cobrirem os pés. Fechados no pescoço. No sol do interior de São Paulo, a avó Caetana era toda sobriedade. Nunca se deu ao trabalho de aprender português. Não ria. Estava sempre brava. Perdeu dois filhos na viagem marítima entre a Espanha e o Brasil.
Foram meses de viagem e o escorbuto (imagino) acabou com várias vidas a bordo. Incluso as dos meus tios-avós que ficaram sob as águas profundas do Atlântico. Não sei ao certo as datas de chegada ao Brasil e de saída da Espanha. Os registros se perderam. Só sei que chegaram ao Brasil por Santos. Depois de meses de viagem. E não tenho a mínima idéia de como foram parar no final do Estado de São Paulo. Vem daí minha gênese, pela linha materna.
Cataluña, 2007. Barcelona, Tarragona. Piso na terra que foi pisada pela minha bisavó. Algo me diz que em algum lugar daquela região, há mais de mim. Outros familiares que ficaram na Espanha. Não fugiram da Primeira Guerra. Nos anos 20, a Espanha viveu sob crise política e econômica, com ameaças do movimento operário, das esquerdas e do separatismo basco e catalão. O rei Afonso XIII permitiu, em 1923, a instalação de uma ditadura militar. Creio que é no período imediatamente anterior a este que meus parentes resolveram emigrar para o Brasil. Precisaria fazer um levantamento profundo em cartórios e registros de imigrações para descobrir de onde vieram meus bisavós e porquê.
De qualquer forma, no ano passado eu estive em terras catalãs. Não sei se embalado por essas memórias de sangue, senti que havia ali uma presença de família. Me senti em casa. Me denominei com o nome espanhol (Garcia) a um taxista que, surpreso, me falou do Tratado de Tordesilhas e, ainda mais surpreso com o fato de eu saber do que se tratava, me disse que talvez pudéssemos ser parentes (Garcia era seu sobrenome). Mas, Garcia é um nome comum na Espanha, assim como o Silva no Brasil. No entanto, vai saber.
Nesta quarta-feira, 30, último dia de abril (último dia para entregar o IR), véspera de uma comemoração esdrúxula, para o meu gosto, já que o trabalho não tem nada de agradável em si, tivemos a primeira das duas aulas de gastronomia espanhola na disciplina de Cozinha Internacional Ocidental. Como soi acontecer nas vésperas dos feriados, éramos 12 alunos para uma sala de 22, 23 pessoas. Claro que todo mundo já emenda de véspera. Só não o fiz porque faltei ontem e anteontem e me sentiria bastante culpado se o fizesse de novo.
E foi ótimo ter ido. Ter feito os maravilhosos guisados espanhóis. Ter celebrado, em festa surpresa de quatro classes, o aniversário de um professor querido. Reunimos quatro classes, às escondidas, com direito a encenações de professor com surtos de nervos (para despistar o aniversariante), balões coloridos, bolo feito às pressas e um belo vinho legítimo sangue de boi para uma pessoa (o aniversariante) que costuma se vangloriar de beber os mais famosos vinhos franceses e italianos. Foi emocionante. E isso faz com que eu goste ainda mais da minha faculdade, do fato de não ser, ainda, uma instituição ampla o bastante para não permitir esse tipo de manifestação. Somos, de uma certa forma peculiar, uma grande família, todas as classes, porque, obviamente, sempre estamos uns de olho no trabalho dos outros e vice-versa. Isso é bastante interessante no ambiente acadêmico, a despeito de uma faculdade de gastronomia não ser, exatamente, um fórum para debates intelectuais.
Cocido Madrileño (ou Puchero, de la Comunidad de Madrid)
Vamos às produções. Como estávamos defasados em número de bancadas e de componentes, dividimo-nos em duas bancadas, com duas produções para cada uma, num total de quatro produções para a primeira aula da Espanha: Cocido Madrileño (ou Puchero, de la Comunidad de Madrid), Zarzuela de Pescados y Mariscos (Catalunã), Fabada Asturiana (de Asturias) e Cerdo con Zafron (Porco com Açafrão, de Extremadura).
Como eu fiz a Fabada Asturiana, passo a receita.
Fabada Asturiana
Ingredientes
- 200 gr de feijão branco
- 150 gr de presunto (jamon) cozido
- 1 cebola cortada em quatro partes (para aromatizar)
- 3 dentes de alho inteiros
- 1 gomo de chourizo sem sangue cortado em rodelas
- 1 gomo de linguiça calabresa picante cortada em rodelas
- 35 gr de toucinho defumado cortado em cubos
- 4 ramos de salsinha para aromatizar
- 50 ml de óleo vegetal
- açafrão a gosto
- sal e pimenta preta moída a gosto
Modo de Preparo
1. Coloque o feijão branco de molho e cozinhe em panela de pressão até ficar macio (de 40 minutos a 1 hora).
2. Junte em uma panela grande o presunto, a linguiça, o toucinho, a cebola, o alho e a salsinha. Reserve o chourizo para adicionar no final, já que é mais macio e cozinha mais rápido.
3. Refogue tudo em óleo e acrescente fundo de carne para cozinhar.
4. Ferva por uns 40 minutos até que as carnes soltem os sucos.
5. Acrescente o feijão branco nessa mistura quando todas as carnes estiverem macias. Separe um pouco de feijão e faça uma pasta (no garfo ou liquidificador).
6. Adicione a pasta de feijão à panela para que a fabada fique espessa. Junte, neste momento, o chourizo.
7. Corrija o tempero com sal e pimenta, se necessário. Note que, como os embutidos já são salgados, talvez não seja necessário colocar sal.
8. Remova a cebola e os talos de salsinha (se não tiverem desmanchado durante o cozimento) e sirva.
(Releve: apenas uma foto estampa este post porque a bateria da câmera acabou no momento de tirar fotos. Como sempre ocorre, aliás. Daí que ainda tive a presença de ir buscar meu iPhone na mochila para registrar os demais pratos. Até aí, tudo bem. Não fosse o fato de, em casa, eu não conseguir, nem sob ameaça, fazer com que o iTunes lesse o iPhone e descarregasse as fotos. Estão todas lá, presas no aparelho. Odeio o iPhone por isso. Deve ser a mesma sensação que o índio tem quando sacam fotos suas. Para os índios, as câmeras captam suas almas. Para mim, o iPhone capta momentos e os arquiva, egoísticamente.)