De como se processa a degradação do jornalismo brasileiro
Nas últimas três semanas, fiz trabalhos para cinco diferentes veículos. Quiçá eu tivesse 48 horas no meu dia para abarcar tudo. Entre poucas horas de sono e muito trabalho, dei conta de todos. Sou freelancer há quase quatro anos. As redações - da grande à segmentada mídia - estão cada vez mais enxutas ou tomadas por profissionais que começam com um salário-piso.
Não é de hoje que vejo redações inteiras serem desmanteladas e ressurgirem com menos qualidade. Os donos dos veículos de mídia não investem: fazem financiamentos, alegam custos inexistentes e jamais se preocupam em fazer revisões periódicas de faixas salariais. O sindicato não tem força. Para nós, profissionais da imprensa, somente nos é dada uma alternativa: trabalhar mais para cobrir vagas que nunca serão preenchidas e ganhar o mesmo.
Aliás, ganhar o mesmo seria até razoável, no contexto. O problema é que a maior parte de nós fomos submetidos a regimes de exceção que, ou muito me engano, ou viraram regra: na última década, para fugir dos impostos, os empregadores fizeram com que nós, pessoas físicas, migrássemos em massa para pessoas jurídicas. Eu tenho uma empresa, meus amigos têm e o fato de ter a própria empresa e emitir nota fiscal passou a ser um critério na seleção - para a redação e para jobs pontuais.
Esse cenário tem, na minha opinião, se agravado cada vez mais: em eventuais contratações da meia dúzia de veículos que ainda o faz, as propostas salariais são ridículas. Ninguém mais leva em conta o conhecimento, o trabalho que você faz e o grau de especialização ou de generalização (o jornalista tem que ser especializado em generalidades, dizem) de que você é capaz.
Sempre que saímos de uma redação, parece que, junto com a empresa, fica o nosso histórico profissional. Para o mercado, somos apenas mais um na multidão. Em que pese a cobrança por dados curriculares que atinjam os mais diversos níveis - conhecimento de inglês, espanhol e, preferencialmente, de uma quarta e até uma quinta línguas; domínio do ambiente digital - redes sociais, programação básica em HTML!; completo controle sobre os concorrentes; metas para dar 'furos' de reportagem'; metas para se entrevistar e manter contato com fontes que, cada vez mais, são tão instáveis quanto nós mesmos; necessidade de ser um jornalista multitarefa - fazer pauta, entrevistar, cuidar da produção das fotos, saber alimentar as diversas entradas - sites, mobile site, veículo impresso; e, ao final, ainda ser um jornalista bom de texto e completamente investigativo, daqueles que são odiados pelas fontes por lhes 'roubarem' informações preciosas.
Como se fossemos espiões. Como se não houvessem outros profissionais de comunicação (assessores de imprensa, gerentes de comunicação, áreas de comunicação corporativas inteiras) a nos bloquear eventuais acessos paralelos e a filtrar, o tempo todo, o que pode e o que não pode ser dito. Alguns dirigentes dos veículos - e qualquer tipo de veículo - ainda não se deram conta de que o hábito antigo de cultivar a fonte acabou. Ninguém é de ninguém e somos, como me disse uma professora do primeiro ano da faculdade de jornalismo, apenas escadas para elevar outras pessoas. No caso, as fontes das empresas.
Nessa escalada que mais se equipara à escalada técnica com que os jornais televisivos abrem suas edições, alguns de nós (eu, inclusive) aceitamos os trabalhos conforme nos chegam. Porque ser freela, nesse campo (e imagino que em outros também) depende somente de você: ou você aceita as condições ou não será procurado uma segunda vez.
Assim, entre os cinco veículos para os quais eu trabalhei, como disse acima, aceitei fazer um artigo. Demorei oito dias úteis, falei com seis fontes bastante conceituadas e produzi o texto. Tenho noção do meu trabalho e sei que sou bom no que faço. Além de eu mesmo ter essa consciência, vezes sem conta me disseram isso. Portanto, sei que sou bom jornalista. Entreguei o texto no prazo (e respeitar o prazo é fundamental nessa profissão) e, pronto!, dei o trabalho por encerrado.
A empresa que me pediu esse job é conhecida. Não é uma empresa de fundo de quintal sobre a qual ninguém ouviu falar. Tenho amigos que lá trabalham. Na próxima segunda-feira, dia 2, fará um mês que entreguei o artigo que, inclusive, já foi publicado há três semanas. Ontem, dia 30, liguei para a empresa para saber quando seria pago. E foi triste: me disseram que a empresa está sem fluxo de caixa (um artifício para nos enrolar) e que me pagarão apenas no dia 17 de novembro. Ou seja, serão 45 dias depois do dia em que entreguei o artigo.
Não sei vocês, mas minhas contas insistem em vencer mensalmente. De forma que, de 30 em 30 dias, tenho que pagar ou serei multado ou sofrerei as sanções por não honrar meus compromissos. Não são 25 dias ou 45 dias. São 30 dias. Depois que falei com a pessoa responsável que, obviamente, não abriu nenhuma hipótese de negociação, se me abateu um sentimento de profunda tristeza com o jornalismo brasileiro. Um pouco mais, já que não é de hoje que reclamo da profissão.
Tive um professor de inglês, nativo do Texas, EUA, que me dizia não entender como nós, da imprensa brasileira, nos sujeitávamos às péssimas condições de trabalho. Esse professor relatava casos de jornalistas norte-americanos, seus amigos, bastante diversos dos nossos próprios casos. Eu sempre refutava e dizia que nós não tínhamos como exigir. Além de não termos um sindicato forte, não se tratava de escolher. Éramos nós os escolhidos e prontos.
Falei duas vezes da fragilidade do sindicato e explico: há um piso para a profissão, assim como para trabalhos feitos por freelancers como eu. Os valores variam conforme o número de caracteres (pode ser páginas, palavras ou toques) e a quantidade de fontes entrevistadas, bem como informações acessórias como fotografias, por exemplo.
Até onde eu sei, nunca fui pago pelos valores que o sindicato apresenta como 'pisos'. A mim me parecem mais 'tetos' do que 'pisos'. Se eu argumentar com as empresas de mídia com os valores previstos pelo sindicato, certamente me mandarão plantar batatas.
Não vou plantar batatas. Vou descascar batatas. Um dos motivos que me levou a fazer a faculdade de gastronomia foi, justamente, esse descrédito com o jornalismo. E também porque quero trabalhar com as mãos, e não mais com o cérebro. Na cozinha, importa o manejo da mão. Não é preciso pensar, elaborar fluxos de pensamento, encadear as entrevistas e fazer de 10, 15, 20 entrevistas artigos lógicos e claros.
Esse último episódio em que me humilharam com os 45 dias somente serve para ratificar minha crescente decisão de emigrar do jornalismo. Por ora, dependo dessa profissão. Eu disse um pouco antes 'descrédito'. E o disse bem: nunca fui iludido pelo jornalismo ou estaria, agora, a chorar 'pelas ilusões perdidas' feito Balzac (livro que eu li antes da faculdade de jornalismo e que me clareou as ideias antes que eu pudesse alegar desconhecimento).
Vivemos, os jornalistas, em um processo de deterioração. Somos, lentamente, desconstruídos. Relegados a uma superfície rasa. É um processo de degradação que atinge vários, senão todos, níveis do jornalismo brasileiro. Antes de ser jornalista, fui bancário. Por meu próprio esforço, saí do mercado financeiro e vim ao jornalismo. Foi uma ruptura radical. Sinto que não terei escrúpulos em fazer de novo a transição e ir da cozinha da redação para a cozinha de fogões. Ou serei eu mesmo cozinhado à exaustão até ser reduzido à condição de confit de pato. Quak! Quak!