"Só sei que nada sei" e "Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância" são, ambas, frases do filósofo grego Sócrates. Cravadas há mais de 400 a.C., são válidas mais do que nunca, quase 2,5 mil anos depois. A palavra "contemporânea" designa, principalmente, o período atual do mundo ocidental e é contada a partir da Revolução Francesa (1789), quando nasceu o iluminismo, em que predomina a razão. No iluminismo, pressupõe-se que a ciência é a base para a solução dos problemas da humanidade e que os homens progridem com os conhecimentos adquiridos, diariamente.
Então, vejamos: Sócrates afirma que o conhecimento, de fato, nunca deverá ser dado por terminado. É infinito. E a ciência, na visão iluminista, evolui a cada dia, o que nos impede de deter e aprisionar o conhecimento adquirido, no tempo e no espaço. Seremos, eternamente, ignorantes, de fato. Sempre há o porvir e o novo, os quais, obviamente, não dominamos.
No cenário internacional, estamos às voltas com uma das maiores crises mundiais: a elevação dos preços dos alimentos em níveis antes nunca vistos. E de alimentos básicos como arroz, milho, feijão, soja. Ou seja, grãos primários, cultivados há séculos pelos humanos. Estuda-se sobretaxar ingredientes comprados fora de estação. E, aqui, não se trata de produtos top da cozinha como as trufas negras ou o foie gras. Não, nada disso. Falamos dos alimentos básicos mesmo. Dada a globalização, claro que, no Brasil, estamos diretamente conectados à crise mundial. Especula-se limitar a aquisição de terras brasileiras por estrangeiros (principalmente chineses). Nos EUA, bilionários fazem ofertas pela Amazônia e declaram que a floresta não é do Brasil, e sim do mundo.
Na Áustria, existe um evento chamado "Ikarus Night". É um evento exclusivo do restaurante Ikarus que consiste em reunir, em uma noite, 250 clientes convidados (a 777 euros por cabeça) e 12 guest chefs (chefs convidados). O caçador de chefs-convidados (nos cinco continentes) é Roland Tretti. Este ano, Tretti esteve no Brasil e levou o chef Alex Atala para o evento, como chef convidado. Até aí, tudo bem, dado o talento de Atala. O mais importante é o que o especialista austríaco declarou sobre o País: "Já estive em mais de 50 países, em contato com o que há de melhor na gastronomia mundial, mas, seguramente, nenhum lugar me surprendeu tanto quanto o Brasil", disse, sobre a riqueza de ingredientes brasileiros.
Agora, o que tem a ver Sócrates, iluminismo, crise mundial de alimentos e a surpresa do especialista austríaco com a diversidade brasileira? Em uma palavra: saber. Sou jornalista e muito, mas muito mesmo do que sei, vem da leitura, mais do que da faculdade e da redação, ou seja, teoria e prática. Na gastronomia, comecei, efetivamente, no ano passado, com o primeiro ano de faculdade. De lá para cá, são 18 meses nesse ambiente, totalmente diverso do meu meio original. Mas, a mesma palavra conecta os dois universos de forma indubitável: o conhecimento, o saber por detrás das informações (no jornalismo) e das produções (na gastronomia).
É preciso estar conectado ao mundo. Entender que a fome atingirá esse planeta de formas antes nunca vistas. E isso ocorrerá muito mais cedo do que o previsto. Entender que a cara, luxuosa e gorda cozinha francesa está em baixa. Calma! Não sou eu que o digo. Está todo dia em todo lugar. O homem precisa ser mais saudável. Menos manteiga e açúcar (França), mais peixe (Espanha) e menos sal (Japão). Só não vê quem não quer. OK, Escoffier catalogou a cozinha e deu ao mundo um modelo para um mundo em que não havia padrão. Mas, evoluímos, não? Veja Adrià, na Espanha, que tem um laboratório químico para casar ciência e gastronomia. Não é o iluminismo isso? Não é Sócrates a pregar que conhecemos os limites de nossa ignorância e que, portanto, temos que ultrapassar esses limites?
Quero dizer que, em um ano e meio na gastronomia, adquiri alguma (pouquíssima) prática, técnicas (muitas) e um saber (mais de 50 livros) sobre o assunto que, há dois anos, eu sequer imaginava que me tomaria assim. Com Adrià, é preciso dominar a tabela periódica, imagine! Eu, que sou uma negação em química! De Alex Atala, que é cidadão do mundo, li em sua coluna na revista "Prazeres da Mesa": "Fiz essa coluna ... Para chamar a atenção de que nem sempre o simples é fácil de fazer. E ainda para dizer que nossa profissão é serviçal, não servil." Está aí! E, na mesma coluna, Atala ensina como fazer o aligot (mistura de purê de batata com queijos). Aligot, diga-se, feito com queijo-Minas!!!! Retorno a Sócrates: "Não sou nem ateniense, nem grego, mas sim um cidadão do mundo", afirmou o filósofo. Preciso explicar mais?
Quero fazer coro com a minha professora de Cozinha Contemporânea que, na aula desta sexta-feira, 30, falou sobre tudo isso e mais. Falou, sobretudo, da necessidade que o universitário de gastronomia tem de expandir seu conhecimento. Não ficar preso a um mundo escuro ou se danará para sempre à beira de um fogão, no eterno embate com a panela.
Ser cozinheiro (ou chef, que seja!) é mais do que travar uma batalha diária entre fogão, panela e alimentos. É ter a dimensão do que acontece à sua volta. É não perguntar: "Tem carne?", quando o prato prevê apenas vegetais (o restaurante L’Arpège, do chef Alain Passard, desde a crise da vaca louca, mantém a cotação máxima de 3 estrelas Michelin com uma culinária exclusivamente vegetariana, inclusive com o uso de legumes em sobremesas).
A alta gastronomia brasileira é novíssima: tem apenas 30 anos. Não há catalogação de ingredientes, técnicas, utensílios, equipamentos e tecnologias na culinária do Brasil. Apenas duas (!!!) produções nacionais têm Documentação de Origem Comprovada (D.O.C.): o brigadeiro e o sanduíche Bauru. Com a ascensão de Atala no ambiente mundial, as atenções voltam-se para o Brasil. E, graças à iniciativa de Atala e de outros chefs brasileiros, começa-se a prestar atenção nos ingredientes da terra (terroir).
Se o aluno de gastronomia não sabe disso, está fora: será um cozinheiro e para isso não precisa de faculdade. Que volte a descascar cebolas e batatas e fazer arroz para batalhões. Estudar gastronomia são, sim, 90% prática de cozinha. Mas, uma universidade, inclusive de gastronomia, supõe a busca pelo saber, sempre. A faculdade é apenas a ponta do iceberg. A profundidade depende de cada um de nós. Do mergulho que fazemos, raso ou profundo.
Isso tudo aqui não é um libelo ou manifesto. É uma constatação. Porque, se temos aula de Cozinha Contemporânea, suponho que ser contemporâneo na cozinha é justamente ter a dimensão do mundo em que vivo e de como relaciono a comida com esse mundo. É aqui, neste exato momento, que tento transpor o limite da minha ignorância. Se serei bem-sucedido, é outra história. Importa que eu (digo eu e me refiro ao aluno de gastronomia, em geral) tenha essa dimensão crítica. A partir daí, como Atala disse, nem sempre o simples é fácil, mas, nenhum caminho é fácil, não é?
Deixei de lado (quer dizer, abaixo, aí embaixo) as produções de hoje porque precisava abordar o tema. Debater gastronomia também é faculdade de gastronomia. Fizemos nesta sexta-feira três sobremesas. Apenas destaco as produções e posto as fotos abaixo. Bom final de semana!
Zabaione de Compota de Morango (o potinho é de massa amanteigada e, dentro do potinho, há três camadas: uma de sorvete de chocolate, outra de creme aerado e a última é de compota de morango). Tradicionalmente, o zabaione é feito de abacaxi.
Mousse de Chocolate com Calda Cítrica (abacaxi e carambola com anis estrelado decorada com cascas de limão e laranja)
Maçã Assada com Abacaxi e Calda Cítrica (laranja e limão)
(Reme: contra a corrente e busque o conhecimento. Leia, saiba, informe-se. Vivemos na era da informação, disponível por todos os meios. São acessíveis, sim. A TV é gratuita. A internet é quase barata. Em época de multimídia, assista algo sobre Sócrates no Google Vídeo; leia a revista Prazeres da Mesa; visite o Mercado Municipal; ilumine-se na biblioteca, é gratuito!)
Este post é dedicado à professora da disciplina de Cozinha Contemporânea. Pode parecer bobo, mas, prefiro não citar nomes aqui. Mas, asseguro, ela sabe e lerá!